domingo, 17 de abril de 2016

O blog.

*Post do amigo Bernard Freire.

A proposta da pesquisa em trajeto consisti em cartografar um “Diário de Bordo”. Nesses quatro anos de universidade criei para mim um locus que guarda o conhecimento artístico que vivenciei no curso. Para tanto, conciliei minha vida à descoberta de saberes, investindo na minha formação teatral, como artista-professor-pesquisador. Modifiquei planos e sobrevoei por disciplinas que ilustravam o modo de fazer, de ensinar e de pesquisar Teatro. Criei o blog Corpo Palavra (https://palavra-corpo.blogspot.com)  e experimentei errar, conhecer e aprender arefletir sobre modos e formas.Transcrevi em páginas virtuais, vivências e pesquisas desenvolvidas dentro e fora da universidade. Rompi o elo da aprendizagem restrita, subordinada ao conhecimento repassado pelo professor e propus-me expandi para o blog tudo o que foi suscitado dentro da sala de aula com um olhar poético não convencional:


Imagem 1: Blog Corpo Palavra. (https://palavra-corpo.blogspot.com)

Com o blog, a pesquisa se deu em torno dessa vivência acadêmica registrada em Diário de Bordo. Uma plataforma virtual da minha trajetória como artista-professor-pesquisador. Uma investigação da escrita; uma cartografia digital artística disponibilizada na web.

A pesquisa tende pôr em análises críticas, as postagens e seus desdobramentos na perspectiva de novas criações, mostrando a comunicação teatral em rede. O Blog Virtual é um dispositivo passível de suportar o desenho do plano de consistência onde está organizada uma trajetória de formação de um artista-professor-pesquisador, no caso, a minha própria formação.

Ao elaborar o projeto de pesquisa obtive de Wlad, proposições para a concepção da pesquisa. Eu tinha a ideia de falar a partir do blog, mas apenas como auxiliador na memorização dos trabalhos; do que realizei dentro da universidade. A professora Wlad propôs mais radicalidade: a revelação plena do blog como sujeito da pesquisa. Essa consideração deu maior consistência à proposta: cartografar, diretamente, os relatos e reflexões postadas no Diário de Bordo, já existente. Essas narrativas com território existencial da pesquisa.

O blog Corpo Palavra, criadono início do curso, é um memorial artístico, portfólio de trabalhos vivenciados dentro e fora da universidade, registro de um ciclo acadêmico, um verdadeiro caderno de professor – para o futuro - com ferramentas que ajudam a construir um processo de trabalho artístico-pedagógico para aqueles que viveram o ser professor-criador.

Defendo a ideia do blog como ponto de apoio dos pensamentos que se multiplicaram durante os quatro anos de curso. Oblog é o meu campo de imanência, nele dei organicidade às ideias que iam surgindo e ainda surgem; materializei o que estava em pensamento e busquei criar no corpo, em palavras, em imagens, em linhas que dão norte a pesquisa de conhecimento. Apresentei-me em processo, em outras margens além da sala de aula.

Sustento a pesquisa partindo dos pensamentos de Gilles Deleuze eFélix Guattari sobre o conceito de Rizoma. Deleuze e Guattari, em Mil Platôs 1 (DELEUZE; GUATTARI,1995), explanam sobre o princípio rizomático que multiplica e gera um encadeamento a outros pontos. Um rizoma que nasce e se conecta com outros rizomas:

Falamos exclusivamente disto: multiplicidade, linhas, estratos e segmentaridades, linhas de fuga e intensidades, agenciamentos maquínicos e seus diferentes tipos, os corpos sem órgãos e sua construção, sua seleção, o plano de consistência, as unidades de medida em cada caso. Osestratômetros, os deleômetros, as unidades CsO de densidade, as unidades CsO de convergência não formam somente uma quantificação da escrita, mas  definem como sendo sempre a medida de outra coisa. Escrever nada tem a ver com significar, mas agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir (p. 11).

O blog é uma extensão de mim, um plano de consistência para as minhas ideias, ações, pensamentos, escrita; um ponto de fuga que discorre das sensações que gritam no interior. É um espaço que muda as coisas de lugar, coloca as ideias e a pratica em organização. Comunica a forma de organicidade, mostra o conteúdo da essência, pulsa um devir.

Decidi publicar o blog Corpo Palavra como um Diário de Bordo e relatar a trajetória de um formando em Teatro. Nesse diário, o processo de formação parte de um conhecimento profissional adquirido na universidade para ocompartilhamento em rede com outros profissionais da arte que utilizam a blogosfera para comunicar, produzir e gerar um encadeamento de informações do meio artístico e toma-lo como produção de conhecimento. O compartilhamento se dá através de “posts” trazendo conteúdos que atravessam o teatro por imagem,vídeo e texto, buscando o sentir ao estar em processo de produção de conhecimento e arte.

Foram quatro anos de curso e tudo o que busquei conhecer partiu do ensino acadêmico, dos diálogos com outros profissionais e das leituras que demarcavam o percurso do pensamento reflexivo. Vivi a universidade por meio de atuações, experimentações e transições que me fizeram descobrir todos os meus atravessamentos-pensamentos. Desloquei-me de um lugar ao outro, saindo do meu contexto habitual e me adaptando a novos lugares através do teatro. Nesse percurso cartografei sentidos; construir linhas de encenação, de composição, linhas de fuga; observei, agenciei, vivenciei e criei a minha própria formação acadêmica.

Quando criei o Corpo Palavra,  joguei na rede um pouco do meu conhecimento, dos meus processos criativos, da minha pesquisa e trabalhos artísticos que ia produzindo nesses quatro anos de curso. Tive disciplinas que disparavam em mim um meio para transpor pensamentos e produzir através de palavras o que estava vivenciando. O blog carrega todosos meus trabalhos, tanto os realizados na sala de aula quanto os que foram produzidos para além dos muros da universidade. Tem o antes, o durante e uma proposta de vislumbramento para o que suceder pós-formado.

No blog procuro recriar minha história além da linguagem textual, busco transcrever em postagens poéticas uma imagem-sonora, uma escrita em diário de bordo. Cartografar meus resultados e me conectar em outras extensões. Sigo o cotidiano; palavras sublinhadas em outras redes. O blog que registra esse diário de bordo carrega um memorial de um artista em construção.  Um meio de não seperder, de se perder achando fatos, processos e composições, linhas de um pensamento educacional, artístico, acadêmico e profissional.

Nas postagens, a forma de ensinamento ministrada pelos professores disparam novos olhares para o fazer teatral. Educar, adquirir conhecimento, pôr em prática ações. Se informar e aprender os trânsitos do ensinamento. Aprender a arte e se profissionalizar com a prática.

O blog parte, do ponto do meu ingresso na Universidade Federal do Pará. Ingressei em 2011 no curso Técnico em Ator e em 2012 no curso de Licenciatura em Teatro. Nesse ciclo duplo de formação me conectei com outras áreas do conhecimento artístico, filosófico e cientifico, participei como estudante de teatro de processos criativos e construí pensamentos sobre uma formação teatral dentro da universidade. Cartografei em postagens no blog, em forma de texto literário, poético, todo o meu ensino-aprendizagem.

A pesquisa em andamento – processo não se encerra no TCC - mostra um meio de se chegar a comunicar de forma poético-reflexiva o processo de criação de um formando em Teatro. Suporte que carrega informações de um caminho em construção; é nele, no blog, que o artista-professor-pesquisador deixará rastro para processos futuros, onde a memória recriará sentidos para o que já foi iniciado.

Para fechar, temporariamente essa introdução, dois pensamentos poéticos de artistas: de Tadashi Endo: “mover-se significa ir em frente, deixar o primeiro (ponto), e cada passo nos leva em direção ao futuro”; e de Ana Cristina Colla: “caminhante, não há caminhos. Só rastros”.

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José Maria Silva

*publicado originalmente no portal Interage.


Ele já era um homem velho. Calvo. Uns cinquenta e tantos anos, quase sessenta. Ostentava uma barriga saliente. Vestia uma camisa social manga-longa branca, meio surrada, e uma calça jeans azul clara. Tinha um rosto firme, castigado por rugas que rodeavam seus olhos. Definitivamente, não havia nenhum traço físico marcante que poderia lhe destacar dos demais. Entrou no ônibus. Eram seis e meia da tarde. Horário de pico. Avenida engarrafada. Buzinas por todos os lados. O calor fazia tudo ficar ainda mais desconfortável. Todos, sem exceção, aparentavam estar exaustos. Havia cerca de dez pessoas em pé, distribuídas disformemente pelo corredor paralelo aos assentos. Ele deu boa noite ao cobrador. Pagou a passagem e passou pela catraca. Notei que carregava, embaixo do braço esquerdo, alguns pequenos caderninhos que pareciam manufaturados com folhas A4. Ele parou do meu lado e pegou com a mão direita um dos exemplares da publicação caseira. Baixou a cabeça por uns instantes e guardou o troco no bolso. Forçou a garganta baixinho para tirar o pigarro. Encarando de frente os passageiros, ele disse:
– Eu sei que nenhum de vocês gostaria de estar me ouvindo falar alto e interromper a viagem de vocês. Mas acontece, gente, que essa foi a única maneira que encontrei de divulgar meu trabalho. O meu trabalho é esse aqui, ó: são poesias, gente. Eu mesmo que fiz. Tudinho, fui eu que escrevi. Não vou mentir pra vocês, deu trabalho sim. Trabalhei minha vida toda como porteiro e só depois de velho aprendi a ser poeta. Escrevo durante o trabalho mesmo. O seu Otávio, que é o sindicato de lá do prédio, disse que eu tenho muito talento. Gente, eu gosto mais de fazer poesia do que de ser porteiro. Mas, gente, pensa comigo: eu tenho dois filhos que ainda tão lá em casa pra eu sustentar, minha mulher é empregada e não dá conta de pagar as contas todas sozinha, como é que eu vou parar de trabalhar de porteiro pra ser só poeta? Não dá, gente. O meu sonho era viver só de ser poeta, mas como é que vou viver disso nessa cidade? Já me chamaram de doido, de vagabundo, até de viado já me chamaram, mas eu não ligo, não. Quero mesmo é ser poeta. Vocês não sabem a alegria que eu tenho quando faço uma poesia. Vou ler uma aqui pra vocês: “O amor de Deus é tão bonito/Que só pode mesmo ser infinito/Cuida, Pai do céu, pra que todos possam estar contigo/Recebendo tua Graça e compartilhando teu abrigo.”. E por aí vai, gente. Imagina se todo mundo lesse poesia, o Brasil não ia ser um país muito melhor? As pessoas não querem mais saber de ler e isso é muito triste. Um país de pessoas que não leem não pode ter futuro, não. Olha a violência como tá, olha a corrupção, paciente morrendo em hospital, é muita notícia triste! Falta poesia no coração das pessoas. Eu tô fazendo a minha parte. É como Deus disse: “Faça sua parte que eu te ajudarei”. Custa dois reais o livrinho, gente, tem mais de trinta poesias. É bem sortido. Quem puder estar dando essa força pra o meu trabalho, eu vou ficar muito agradecido, viu? Boa noite pra vocês.
Precisei conter o choro quando dei as duas moedas de um real a ele e, enfim, pude olhar fixamente em seus olhos. Aquele homem era tão diferente de mim, vinha de um mundo que parecia tão distante que, talvez, não conseguíssemos conversar e nos entender por mais de meia hora. Não por falta de assunto ou de interesse, mas porque eu ficaria, sinceramente, constrangido de expor minhas dificuldades ao conhecer as dele. Quem sabe, ele não se importasse de fazer um monólogo para mim. Fiquei querendo saber se ele conhecia Drummond, Leminski, Manoel de Barros, Bandeira, Ana Cristina Cesar, Bukowski, Baudelaire. Provavelmente não. Tive vontade de dizer que o compreendo, que também gostaria de ser poeta, que a vida, às vezes, é foda e não dá margem para sonhar, que o mundo, de fato, seria infinitamente melhor se as pessoas tivessem sensibilidade o bastante para consumir poesia. Mas não falei nada. Olhei para trás e vi outras duas ou três pessoas comprando seu livrinho: “José Maria Silva – Poesia Reunida”. O José desceu do ônibus agradecendo a todos, parecia satisfeito. Depois, lendo seus poemas, de uma simplicidade que os tornavam quase infantis, percebi que eu era um José Maria também. A poesia entranha e escorre. Não se faz poesia por escolha, se faz por necessidade. O José tinha a minha precisão. Com seu esforço, era maior que eu. Senti inveja pelos livros que nunca publiquei ou fiz à mão.