sexta-feira, 19 de junho de 2015

Visão.

  Era uma paisagem de palavras que eu percorria com pés cautelosos, com receio de desfigurar imagens verbais e desordenar a métrica imposta pelo acaso. Sempre ele, o acaso, me servindo de guia espiritual, guru, gênio da lâmpada e maestro, orquestrando involuntariamente meu destino. Meu destino, aliás, não dura dois parágrafos. Ele é matéria disforme, produto mutante, que, ao invés de gerar resultados, se recria infindavelmente em improbabilidades a perder de vista. Esta é mais uma delas. 

 Era um mosaico de letras que, dependendo do ângulo, fazia as vezes de um caleidoscópio multicolorido, como uma câmera escura geneticamente modificada pra explodir em feixes de fótons. Tinha o ritmo certo pra possibilitar uma leitura mental cadenciada e harmônica, uma melodia delicada que emocionava até os corações mais duros, calejados de forma incorrigível por certezas pré-fabricadas e egoísmos diversos. 

  Era um hino capaz de fazer conservadores bradarem a favor do amor livre e socialites amarguradas desenvolverem, milagrosamente, doses de empatia e bom senso. Era uma revolução íntima, sem freios ou rédeas, que levava à iluminação, ao nirvana, à graça. O texto que vislumbrei curava chagas, fomes e pobrezas, do corpo e do espírito. Era uma revelação contrária àquela dada a João, pregava o amor à destruição, a conciliação ao castigo, a felicidade à renúncia. 

  No fim das contas, não consegui. Nem cheguei a tentar, pra ser honesto. Morreu bebê prematuro o poema mágico que, por inabilidade e inexperiência, eu não pude decifrar e recompor. Legiões permanecerão sofrendo por minha culpa. É minha a responsabilidade por ser viciado em procrastinação e adepto da preguiça. Quando vi que teria que escrever duzentas folhas só de introdução, decidi que era mais prudente deixar pra alguém mais nobre a competência de salvar o mundo por meio da arte. Podem me condenar. Apesar de megalomaníaco, não sou tão vaidoso e dá muito trabalho entrar pra história. Alheio à tentação sórdida dos que pretendem imitar os grandes mártires, prefiro o anonimato inocente reservado aos vagabundos.

domingo, 14 de junho de 2015

Desculpa P/ Sujar Papel.

Foi assim que me ocorreu:
como um espirro fruto de uma gripe rara, dessas
que dão em bicho ou levam letras do alfabeto
por serem inclassificáveis de outra forma.
Foi assim que me ocorreu:
 instantâneo, irreprimível e veloz,
 como um susto, desses
que curam soluços ou matam
do coração.
O poema me tomou pelas
 mãos e me trouxe até
aqui, lugar-nenhum,
em que crio artifícios e
artimanhas para selar
 um pacto, em que troco
versos pobres por sorrisos,
 forçados ou sinceros.
Tanto faz, como tanto fiz.