quinta-feira, 9 de abril de 2015

Estrangeiro.

Dentro de mim mora um estrangeiro. É um apátrida, um outsider, um extraterrestre fugitivo de um planeta condenado por uma peste incurável. Aceitei carregá-lo por comiseração e respeito. Sou sua casa e seus sentidos. Desde que nasceu, ele não se habituou à materialidade das coisas e à concretude do passar do tempo. Dentre outras coisas, estranha aglomerações, dias quentes, conversas de trabalho, smartphones e a tolerância à rotina. Por vezes, posso senti-lo tateando minhas veias, órgãos, arrastando os pés nos meus vãos, olhando fixamente para pontos estáticos através das minhas retinas. Ele ainda não está convencido que a realidade é uma possibilidade razoável. Seu passado invade seu presente que se sobrepõe rápido ao futuro, esvaindo-se depressa. Segue atônito impelido por uma força maior que sua vontade. Há noites em que os sonhos lhe parecem mais sólidos e aceitáveis que a vigília. Crê que, a qualquer momento, acordará em outro lugar, em outro corpo, e descobrirá que suas memórias eram apenas ilusões. Ele desconfia de gostos e de falas, acha inaceitável a indiferença ao absurdo do mistério que é estar vivo. Aos poucos, aprendi a compreendê-lo e a valorizar sua ignorância. O estrangeiro tem olhos de criança e cabeça de velho e, por esta sina, o mundo lhe parece uma hipótese incompleta, portanto, impraticável. Um dia, ele vai aprender a relevar suas dúvidas e a fragilidade que sustenta o caos necessário para a vida funcionar. Um dia, seus olhos envelhecerão e o estrangeiro descansará.

Um comentário:

Gyzelle Góes disse...

Isso é pura poesia. '' Um dia, seus olhos envelhecerão e o estrangeiro descansará.'' Que bonito...