domingo, 19 de abril de 2015

Memorial das Dores Ignoradas.

Tô à margem. Eu fui pra muito distante. É inútil me estender a mão. Tô tão longe que ninguém pode me ver bem. Enxergam só um vulto magro. Daqui eu devo parecer aceitável. É solitário. Meu peito pesa um elefante. O ar é rarefeito. Meus pulmões estão obstruídos. Dói uma dor frágil e latente. Me sinto um fantasma e essas coisas não deveriam me incomodar. Minha cabeça tonteia a esmo. Não faço conexões lógicas com o real. Eu me perdi há muito tempo. Acho que foi na época em que correr ainda era bom. Quando eu era criança, eu era quase feliz. Fui crescendo errado até me tornar uma casca oca que não reverbera nada. A melancolia reivindicou posse do meu ser. Visto uma máscara com traços carregados de culpa e ingratidão. Só percebo o caos. Eu me afogo no caos. O caos me entranha. Ele tem gosto de sangue. Há cicatrizes invisíveis nos meus antebraços. Há marcas profundas sob minha pele. Sinto falta da esperança ingênua da loucura. A química que a inibe não me ajuda. Eu creio que nada pode me salvar. Nada pode fazer com que eu me acostume a mim. Tô muito cansado. Sou uma criança mimada, assustada, com medo da vida. Eu enceno atos de uma peça que não é a que escolhi pra mim. Existir é um mistério grande demais pra eu suportar. Eu tento me perpetuar em memórias porque não tolero o presente. Não consigo dividir comigo o mesmo lugar no tempo e no espaço. Talvez eu queira gritar por socorro, mas desaprendi a falar. Só sei escrever. Me viciei em palavras. Elas me enganam e me traem. Eu não revido. Cada vez faço menos barulho. Tô treinando pra o meu silêncio. Vou morrer numa overdose de poesia ruim. É clichê o meu drama. Quando eu for embora, quero deixar de herança saudades e sorrisos tristes.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Estrangeiro.

Dentro de mim mora um estrangeiro. É um apátrida, um outsider, um extraterrestre fugitivo de um planeta condenado por uma peste incurável. Aceitei carregá-lo por comiseração e respeito. Sou sua casa e seus sentidos. Desde que nasceu, ele não se habituou à materialidade das coisas e à concretude do passar do tempo. Dentre outras coisas, estranha aglomerações, dias quentes, conversas de trabalho, smartphones e a tolerância à rotina. Por vezes, posso senti-lo tateando minhas veias, órgãos, arrastando os pés nos meus vãos, olhando fixamente para pontos estáticos através das minhas retinas. Ele ainda não está convencido que a realidade é uma possibilidade razoável. Seu passado invade seu presente que se sobrepõe rápido ao futuro, esvaindo-se depressa. Segue atônito impelido por uma força maior que sua vontade. Há noites em que os sonhos lhe parecem mais sólidos e aceitáveis que a vigília. Crê que, a qualquer momento, acordará em outro lugar, em outro corpo, e descobrirá que suas memórias eram apenas ilusões. Ele desconfia de gostos e de falas, acha inaceitável a indiferença ao absurdo do mistério que é estar vivo. Aos poucos, aprendi a compreendê-lo e a valorizar sua ignorância. O estrangeiro tem olhos de criança e cabeça de velho e, por esta sina, o mundo lhe parece uma hipótese incompleta, portanto, impraticável. Um dia, ele vai aprender a relevar suas dúvidas e a fragilidade que sustenta o caos necessário para a vida funcionar. Um dia, seus olhos envelhecerão e o estrangeiro descansará.