domingo, 16 de março de 2014

Na sarjeta.

        Eu te encontrei, ontem de madrugada, na vala, pedindo socorro. Teu vômito lavava teus pés e manchava teu vestido branco. Tinhas a cabeça entre as pernas e as abraçava afagando tuas canelas finas. Estavas atordoada e sonolenta. Teu corpo pendia pra direita. Um terço do teu rosto se sobressaia entre os joelhos, iluminado pela luz amarela do poste. Eu fiquei, de longe, te olhando. Pensei na possibilidade de teres cheirado cocaína, talvez estivesses tendo uma overdose. Havia uma puta que nos observava da outra esquina, distante. Tinha um grafite estranho no muro às tuas costas. A rua estreita estava seca de carros e de pessoas. Havia apenas tu e tua decadência frágil. Algumas pedras portuguesas da calçada estavam soltas. Havia uma pedra solta perto da tua coxa esquerda. Senti uma necessidade estranha de colocá-la no lugar. Eu pensei em te carregar no colo, mas fiquei sem jeito. Eu gostaria de ter te estendido a mão, mas faltou coragem. Tu permanecias imóvel, exceto pelas tuas costas se mexendo com o inflar dos teus pulmões. E, de repente, não sei direito como aconteceu, meu nariz começou a coçar. Meus olhos umedeceram e, te vendo no chão, lágrimas escorreram pela minha bochecha. Eu acreditava ter superado o tempo dos sentimentalismos baratos. Chorei de incompreensão. Não era compaixão ou pena. Eu chorei porque gostei muito de ti. Acho que foi a luz, o vômito ou tua semiconsciência. Gostei de ti de forma ingênua, superficial, idiota e intensa. Eu queria saber da onde tu vinhas e ouvir teus problemas. Eu queria limpar tua sujeira e resolver tua vida. Eu ia te perguntar o que tinhas ingerido e qual era o teu maior segredo. Eu ia te convidar pra assistir Masculino Feminino e te faria companhia no tédio de um domingo desses. Eu não entendi porque estavas só, exposta a assalto, sequestro, assassinato, estupro. Foi quando me aproximei do teu all star e toquei teu ombro direito. Levantaste a cabeça pra mim e teus olhos verdes estavam serenos. Fiquei te olhando por uns dez segundos, antes de te refugiares de novo no vão entre teus joelhos. O acaso, o acidente, a imprecisão do encontro, o cheiro da madrugada, todas essas coisas reviraram meu estômago. Eu escreveria um poema escroto se tivesse pulso. Eu beijaria tua boca babada e suja se não me doesse o peito. Senti aquela rua soturna rodar embaixo dos meus pés. Eu quis correr, mas senti que iria cair. Fui embora, devagar, com a certeza de que perdi algo. Foda-se. O pessimismo na dúvida é o conforto dos covardes. Eu espero que tenhas sobrevivido. Tu, sem se mexer, gritas em silêncio, afagas e açoitas, ameaças e seduz, tu morres e tu matas.

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