sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Bolinha de papel que deveria estar amassada na lixeira.

 

     Amar o percalço, amar o tropeço, a ansiedade da queda, amar a dor. Amar o sangue escorrendo viscoso, amar o ardor, amar as células morrendo, amar o cascão da ferida embrutecendo frágil. Amar a crosta perdendo as raízes, amar a cicatriz enfeitando a pele, a lembrança do corpo caindo em suspensão. Amar a expectativa, amar a indefinição, amar o caminho, amar a estagnação, amar o que prossegue, amar ignorando que se ama, amar brincando, amar perfurando a carne sem tocá-la, amar reincidindo num ciclo vicioso atemporal, amar mesmo que feda à cagada, amar, sobretudo, para inventar o amor no infinitivo e, assim, amar independente disso.

sábado, 10 de novembro de 2012

Um maldito par de pernas.

 
      Olívia crê que o senso de coletividade é capaz de vencer injustiças. Olívia crê que pequenas atitudes geram grandes transformações. Viver com Olívia é morar num sonho onde a força das ideias alteram engrenagens que movem a sociedade há milênios. É passear por belos campos onde se cultiva a ilusão de que o desejo de transformar é superior à força do Estado. Para Olívia, a opinião é ferramenta e não um simples acessório. Olívia acredita que, unidos pela mesma causa, podemos transcender o tempo de gerações e, sem qualquer contexto político ou disposição social, somos capazes de avançar de forma mais igualitária e pacífica. Ela confia que, em um mundo movido por vaidade, a boa intenção é capaz de “inflar a massa” e torna-la mais solidária.
      Como está claro, não consigo achar qualquer justificativa para continuar com Olívia, além de seu maldito par de pernas. A questão é: está cada vez mais difícil ignorar minha sensatez e a megalomania infantil dela me aborrece desgraçadamente. Daqui a pouco, estou fazendo minha parte para acabar com o efeito estufa ou compartilhando mensagens virtuais em favor de oprimidos. Problemas que existiam, existem e existirão independente de qualquer coisa que eu faça ou deixe de fazer. Não vou me permitir ter a consciência tranquila por participar de algo que não está sujeito a mim. É paranoia e piração demais para minha cabeça.
      Me prostro no parapeito do terraço e, levando a mão ao coração, penso em Olívia e em como ela é desprezível. Como Olívia me corrói, como uma doença venérea que peguei naquela noite de sacanagem em que fui condenado a essa mediocridade ingênua. Rogo para que Olívia perca as pernas para eu não ter mais justificativas para venerá-la na outra vida. Que ela se amarre em uma sumaumeira gigante, ameaçada pela construção de um condomínio, e uma motosserra dilacere seus membros, bem devagar.
      Mas, rendido, amo, amo, e, no fundo, me atiro por Olívia. Sonho com suas causas, me provando que outro mundo é possível, que a morte é apenas uma das possibilidades. Enquanto caio, condiciono meu cérebro a ignorar a queda, a aceitar que milagres são reais, que a vida não permite tiranias como a que apliquei a mim. Agora sei que revoluções pessoais são possíveis através da desmistificação da realidade. Agora sei que ela estava certa. E como é maravilhoso perceber que Olívia sempre esteve sã, que as leis são relativas, que o amor supera o caos e a maldade e voo, voo. Voo como Ícaro, como Neil Armstrong, como Peter Pan, como Superman, como Arthur Dent...
      Dois milésimos de segundo depois, claro, meu crânio já estava rachado em tantos pedaços que não puderam montá-lo de novo. Ironicamente, terminei protestando, entre o meio-fio e a pista, fechando a rua e, morto de vergonha, atrasando o compromisso dos outros. Tive que ser sepultado em caixão fechado, uma choradeira do caralho. Infelizmente, Olívia não entrou em depressão e continuou lutando por uma “sociedade melhor”. Juntou uns loucos e fez uma manifestação “contra o suicídio, a favor da vida”, uma tristeza. Minha melhor herança foi ter permanecido na memória de todos como um cara legal, como alguém humilde que nunca quis fazer a diferença ou “aparecer”. Como uma pessoa consciente de si e da pequeneza de sua vida em relação à existência de todo resto. E, ainda bem, ninguém nunca soube que morri como um visionário.