sábado, 19 de maio de 2012

Dona Tereza.

      A indiferença de dona Tereza em relação a tudo era tão notável que, olhando fundo em seus olhos, qualquer um poderia perceber que eles já não se interessavam em enxergar qualquer coisa que lhes atravessassem as retinas. Aliás, para a senhora, melhor seria se elas tivessem apagadas. Os olhos de dona Tereza olhavam para dentro, para as memórias escondidas sob os ralos cabelos brancos, vasculhando cacos de passado que, às vezes, rasgavam o peito de uma moça de 15 anos que escutava Noel com o ouvido colado no rádio. O presente e o futuro se misturavam lentos, indissociáveis, numa sucessão de horas, mais ou menos iguais, que pareciam um longo, gigantesco, dia que se esqueceu de acabar.

      A nora e o filho de dona Tereza insistiram para que morasse com eles e com os netos porque, segundo os parentes, ela estava “idosa demais pra viver desacompanhada”. Dona Tereza, na época, achou muito engraçado o eufemismo que criaram pra dizer que ela estava “muito velha pra ficar sozinha”. Ninguém sabia, mas a mulher de 92 anos já era velha e sozinha há muitos anos, antes mesmo de perder os dentes, de a gravidade lhe despencar os peitos, de casar, de surgir o primeiro sinal de ruga na testa e de sangrar na menarca.

      Dona Tereza ainda resistiu alguns meses, explicou que estava bem no casarão antigo cheirando a mofo, que não gostava de apartamentos, mas sua pirraça foi encarada como “teimosia de velho”, como bem afirmou o próprio filho. Para não se sentir ainda mais desmoralizada, para não entristecer mais ninguém, por orgulho e decência, a mãe cedeu imaginando que não precisaria suportar por muito tempo.

      No início, dona Tereza ainda tentou interagir com os netos, com o filho, a nora, mas todos pareciam apressados ou cansados demais para lhe dar atenção. Não entendiam ou não se interessavam pelo que ela falava e, percebendo que obrigava os outros a serem forçosamente atenciosos, a senhora optou por só se manifestar quando fosse solicitada. Como ninguém fazia muita questão de ouvi-la, pouco dona Tereza falava. Ela passava os dias tricotando na varanda enquanto escutava o chiado do rádio. Felizmente, a velhice não lhe tirou a independência e a saúde e, ainda que estivesse sozinha, ela podia sobreviver decentemente.

      Há pouco tempo, dona Tereza havia começado a fingir que estava gagá. Em protesto à desatenção da família, ela começou a sujar as paredes com cocô, derrubar comida no chão propositalmente, beber água na vasilha do cachorro, quebrar porta-retratos... A esperança era que lhe mandassem para um asilo, para o cemitério, ou para qualquer lugar em que sua presença fosse anulada para que ela não se sentisse tão ignorada. Tudo que fizeram foi contratar uma babá para lhe vigiar, uma moça tão boazinha que dona Tereza ficou com pena de sacaneá-la. Depois de semanas de plano frustrado, numa manhã de domingo, a senhora se dependurou na janela do quarto e caiu do oitavo andar no terreno baldio vizinho ao edifício.

      O problema é que dona Tereza ocupava os espaços com uma ausência tão grande que, quando saia, as pessoas só notavam que ela havia se recolhido para o quarto porque a sala ficara mais barulhenta. Como o quarto de dona Tereza era seu grande refúgio, o único pedaço que sobrou de sua antiga casa (agora vendida), ela trancava a porta por dentro e nem mesmo a diarista podia entrar lá. Dessa forma, aquele cômodo existia à parte do resto do apartamento e era desprezado tanto quanto a sua dona. Cinco dias depois da queda, o filho, espantado, comentou com a mulher: “Tem alguma coisa diferente na casa...”. “Fiz luzes no cabelo.”, ela comentou. “Ficou bonito”.

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