sábado, 26 de maio de 2012

Epílogo.

      Velhas carpideiras choram de nostalgia no porão da casa. Os sentimentos padecem nus antes de terem tamanho pra vestir roupas, jazem sob a cruz diária no meio do cansaço. Te vejo por entre a frestra de uma porta multimensional, dormindo quieta no meio do vale Marineris, com uma solidão tão grande que mal cabe no deserto. Me contento, ou melhor, me conformo, em admirar a areia acariciando tua cara, já que os dedos não alçam. Minha liberdade tá condicionada à uma espera que, provavelmente, é só a antecipação de outra maior. Mal te escuto, só ouço o vento soprar quieto. Rezo pra que eu não esteja cansado demais pra ouvir qualquer coisa. Procuro ainda um espaço, respaldado de razão, pra te encaixar no meio dos meus problemas.

sábado, 19 de maio de 2012

Dona Tereza.

      A indiferença de dona Tereza em relação a tudo era tão notável que, olhando fundo em seus olhos, qualquer um poderia perceber que eles já não se interessavam em enxergar qualquer coisa que lhes atravessassem as retinas. Aliás, para a senhora, melhor seria se elas tivessem apagadas. Os olhos de dona Tereza olhavam para dentro, para as memórias escondidas sob os ralos cabelos brancos, vasculhando cacos de passado que, às vezes, rasgavam o peito de uma moça de 15 anos que escutava Noel com o ouvido colado no rádio. O presente e o futuro se misturavam lentos, indissociáveis, numa sucessão de horas, mais ou menos iguais, que pareciam um longo, gigantesco, dia que se esqueceu de acabar.

      A nora e o filho de dona Tereza insistiram para que morasse com eles e com os netos porque, segundo os parentes, ela estava “idosa demais pra viver desacompanhada”. Dona Tereza, na época, achou muito engraçado o eufemismo que criaram pra dizer que ela estava “muito velha pra ficar sozinha”. Ninguém sabia, mas a mulher de 92 anos já era velha e sozinha há muitos anos, antes mesmo de perder os dentes, de a gravidade lhe despencar os peitos, de casar, de surgir o primeiro sinal de ruga na testa e de sangrar na menarca.

      Dona Tereza ainda resistiu alguns meses, explicou que estava bem no casarão antigo cheirando a mofo, que não gostava de apartamentos, mas sua pirraça foi encarada como “teimosia de velho”, como bem afirmou o próprio filho. Para não se sentir ainda mais desmoralizada, para não entristecer mais ninguém, por orgulho e decência, a mãe cedeu imaginando que não precisaria suportar por muito tempo.

      No início, dona Tereza ainda tentou interagir com os netos, com o filho, a nora, mas todos pareciam apressados ou cansados demais para lhe dar atenção. Não entendiam ou não se interessavam pelo que ela falava e, percebendo que obrigava os outros a serem forçosamente atenciosos, a senhora optou por só se manifestar quando fosse solicitada. Como ninguém fazia muita questão de ouvi-la, pouco dona Tereza falava. Ela passava os dias tricotando na varanda enquanto escutava o chiado do rádio. Felizmente, a velhice não lhe tirou a independência e a saúde e, ainda que estivesse sozinha, ela podia sobreviver decentemente.

      Há pouco tempo, dona Tereza havia começado a fingir que estava gagá. Em protesto à desatenção da família, ela começou a sujar as paredes com cocô, derrubar comida no chão propositalmente, beber água na vasilha do cachorro, quebrar porta-retratos... A esperança era que lhe mandassem para um asilo, para o cemitério, ou para qualquer lugar em que sua presença fosse anulada para que ela não se sentisse tão ignorada. Tudo que fizeram foi contratar uma babá para lhe vigiar, uma moça tão boazinha que dona Tereza ficou com pena de sacaneá-la. Depois de semanas de plano frustrado, numa manhã de domingo, a senhora se dependurou na janela do quarto e caiu do oitavo andar no terreno baldio vizinho ao edifício.

      O problema é que dona Tereza ocupava os espaços com uma ausência tão grande que, quando saia, as pessoas só notavam que ela havia se recolhido para o quarto porque a sala ficara mais barulhenta. Como o quarto de dona Tereza era seu grande refúgio, o único pedaço que sobrou de sua antiga casa (agora vendida), ela trancava a porta por dentro e nem mesmo a diarista podia entrar lá. Dessa forma, aquele cômodo existia à parte do resto do apartamento e era desprezado tanto quanto a sua dona. Cinco dias depois da queda, o filho, espantado, comentou com a mulher: “Tem alguma coisa diferente na casa...”. “Fiz luzes no cabelo.”, ela comentou. “Ficou bonito”.

sábado, 12 de maio de 2012

Justiça seja feita.

      “Justiça seja feita, analisados a fundo, todos somos culpados. Nosso crime, capital e inafiançável, é existir conformados em apenas existir. A vida é um acidente, um acaso, um contratempo. Qualquer justificava atribuindo a ela razões insustentáveis só servem para mostrar o quanto estamos perdidos. Tão perdidos quanto estávamos quando ainda idolatrávamos o fogo. As mudanças na sociedade, em dez mil anos, são um grão de areia no deserto silencioso preenchido pelo tempo desde a origem de tudo. Nossa passagem por aqui é tão insignificante que se a humanidade simplesmente sumisse hoje, a alteração que isso provocaria no universo seria o equivalente a de um cubo de gelo subindo o nível de todos os oceanos.

      Todos somos frutos do caos e da desordem. Reordenamos as coisas como se pudéssemos resignificar o que é inalterável, como se fossemos produtivos sendo úteis a causas perdidas, como se valesse a pena seguir em frente obedecendo a ordens por misérias, cumprindo rotinas desgastantes, dando justificativas a estranhos como se isso fosse relevante, nos relacionando como se entretenimento barato aliviasse o peso do tédio, satisfazendo nossa vaidade como se fossemos dignos de ser notados... É inútil se preocupar em agradar ou ser aceitos por seres tão dispensáveis. A realidade é tão frágil e ilusória que, a qualquer momento, tudo pode se desintegrar num capricho quântico do espaço.

      Os únicos que se salvam são os loucos, os vagabundos, os inúteis, os artistas que, embriagados pela lucidez, conseguem perceber que nada vale a pena, nem nunca valeu ou valerá. Os sábios que não ignoram o absurdo da vida e o encaram como se ele não pudesse destruí-los. Outsiders que admiram de longe a sociedade prosseguir ingênua cheia de cegos simples, inocentes, ocos, maus, egoístas e idiotas caminhando devagar para morte com sorrisos mentirosos no rosto. Os desajustados são os únicos que conseguem vislumbrar o prazer de existir sem rédeas ou verdades pré-fabricadas. Niilistas que encontram redenção no estado natural das coisas, na incerteza palpável que guia nossa existência. Eles se divertem juntos, unidos pela descrença nos outros e pela serenidade de quem tem toma a consciência de que a vida não é prática, é densa, simbólica e indecifrável. Consolados pelo desprezo, eles morrem em paz, todos os dias.”

      O desabafo foi achado no bolso de um jovem mendigo que, sucumbindo à cirrose, morreu se cagando. Infelizmente, estava tão sujo e nojento que nunca foi lido. Pelo menos o corpo do rapaz, tão podre quanto o papel, serviu para ajudar nas aulas de um curso de medicina, que, por ironia do destino, era dado em uma faculdade particular. O preço de duas mensalidades, por incrível que pareça, era maior do que o valor que aquele cara conseguiu gastar em cachaça e comida durante toda sua vida miserável. Ele ficaria feliz se soubesse que, ao menos morto, sua vida pôde ganhar algum sentido. Ficaria muito contente ao ver garotos ricos e mimados vomitando enquanto examinavam suas entranhas, secretamente sentindo um nojo enorme de tudo que ele foi.

sábado, 5 de maio de 2012

Essa é verídica (só essa, juro por deus).

      Havia uma senhora morena magra de cabelos crespos bagunçados, bermuda surrada, blusa gasta e sandália de dedo. Vou chamá-la de senhora porque não sei seu nome e, ainda que soubesse, não seria o suficiente pra tira-la do anonimato a que nasceu condenada. Ela é companheira de outros tantos milhões que vivem às margens disso que chamamos sociedade, que recebem como cumprimento viradas de cabeça fingindo ignora-los. Eu sei que há muitas senhoras morenas assim por aí, mas eu não me arrisco em chutar uma idade, o que poderia facilitar a produção de uma imagem mental, porque ela aparentava ser muito pobre. Não sei se pobre a ponto de não ter nada, mas era pobre o suficiente pra não ter o direito de se preocupar com muitas vaidades. Quando se é pobre, não dá pra enganar o tempo: viver exige esforço, é preciso andar debaixo do sol, suar, usar as mãos, cansar as pernas, esperar e trabalhar muito até a hora de dormir. Não sobra dinheiro pra gastar com tratamento capilar, pilates, ginástica, roupas bem acabadas, sapatos bonitos, jóias chamativas, botóx, peeling ou os novos lançamentos de maquiagem da Avon.

      No entanto, a vida, justíssima como só ela consegue ser, deu àquela senhora uma forma de esconder a passagem dos anos e envergonhar quem tivesse coragem de lhe virar a cara: um tumor, uma carne estranha, uma parte avulsa que brotava da lateral esquerda de seu rosto e lhe cobria e deformava boa parte da cara. Então, aquela senhora, que nasceu já não tendo nada ou quase nada, recebeu como presente uma marca gigante que lhe atraía olhares indesejados, como o meu.  Eu a vi quando estava dentro do carro, preso em um engarrafamento, enquanto ela se dirigia a um banco. A senhora parou em frente à lateral envidraçada da agência, olhou seu reflexo no vidro e ajeitou os cabelos. Depois, andou mais à frente, se apoiou com as duas mãos na porta e aproximou o rosto pra tentar olhar através do espelho pra o interior do prédio. O carro andou e eu fui embora, mas, pra mim, aquela senhora ficou lá pra sempre.