sábado, 7 de janeiro de 2012

Graças a Deus.

     Geraldo, voltando do trabalho, esperava o ônibus ansioso pra conferir o resultado da Mega da virada. Sem grandes expectativas, claro. Só uma nesguinha de esperança dessas que mantém pessoas igual Geraldo vivas, como um prato de feijão velho requentado, uns instintos teimosos ou os quadros do programa do Luciano Hulk. Não se lembrava quais números havia marcado. Jogou sem olhar, como sempre faz. Acredita que a sorte é algo que aparece quando não estamos prestando atenção e que pra atrai-la é necessário respeitar algum mistério. Besteira.  

    Repassando mentalmente os números que viu no Jornal Nacional, Geraldo viaja com o futuro pré-fabricado na cabeça. Na primeira noite, contrataria uma puta de luxo pra tirar o atraso de anos. Depois, viajaria pra Bahia, compraria uma Ferrari, um iate, uma Jacuzzi, uma cobertura no Leblon, a imortalidade, a estátua do Cristo Redentor, o caralho a quatro. Daria uns cem mil reais pra mãe porque não tolera ingratidão e é dona Maria que até hoje lhe faz a comida.

    O futuro milionário se deixa esparramar no banco duro ônibus e vai seguindo com os olhos os postes da avenida Brasil. E um esboço de riso quase expõe os dentes podres que lhe envergonham desde moleque. Ele tem medo de dentista, mas não assume. Ter pouquíssima grana é uma desculpa conveniente pra justificar quase qualquer coisa, e é essa que Geraldo usa. Antes justificar a podridão dos próprios dentes do que roubo seguido de homicídio pra comprar dentadura de ouro, não é?

    Uma certeza estranha invade o peito de Geraldo. É uma dessas premonições raras, que vem em forma de sensação e quase nunca viram futuro, mas que impressionam os mais sensíveis. Geraldo nunca foi muito impressionável. É católico praticante, graças a Deus, mas acredita que sinais do além são mais explícitos que pressentimentos sem sentido. De qualquer modo, assim que desce do ônibus, ele apressa os passos. Sobe dois degraus por vez enquanto seu coração palpita descompassado e um suor frio desce pelas suas têmporas.

    Ele sabe que é besteira, que está agindo feito idiota, que não vai dar em nada, mas não consegue controlar o nervosismo. E agora vai quase correndo, pisando em merda de cachorro, em fralda usada, em vômito (ou coisa pior), quase caindo no abismo, pensando "mas e se...". E dona Maria quase morre de susto ao ver o aspecto perturbado do filho que invadiu o barraco num misto de angustia e desespero.

    Geraldo pega o bilhete na cômoda velha com a mão suada e o olha incrédulo. Nenhum dos números corresponde aos sorteados. Não há um mísero acerto pra dar razão a tanta agonia. Nenhuma migalha de sorte resolveu aparecer, nem por piedade. E Geraldo quase gargalha de si mesmo com seus dentes podres acusando uns aos outros. Rasga o bilhete mais por conformismo que por raiva. Antes de ir comer o feijão com ovo que a mãe já havia posto em seu prato, vai até a janela agradecer Jesus Cristo por ter chegado vivo em casa.

Nenhum comentário: