sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

A melhor foto da noite ou uma crítica babaca e óbvia que pode servir contra mim um dia.

 

      “Talvez a gente dê valor a essas coisas todas só porque a gente nunca teve nada disso”, falou Carlos. Ela acariciava a tela do celular, olhou para ele rápido e esboçou um sorriso. “Sabe, se nós fossemos ricos e pudéssemos viajar por aí, a gente iria se entediar com os jet lags, check-ins, hotéis com lençóis de seda e vista pra torre Eiffel...”, continuou. Ela entortou levemente os lábios, suspirou e disse “quem sabe”. Um tanto sem graça, o homem arriscou de novo. “Quanto menos se tem, menos se precisa pra se sentir satisfeito. Se tu deres um MacLanche Feliz pra um desses meninos de rua viciados em cola, ele vai ser a criança mais contente do mundo. Pelos menos por uns minutos”. “Nossa, que triste, mas faz sentido”, disse Ana, claramente desinteressada. Carlos perguntou se a estava entediando, se ela preferia que ele lhe contasse como havia sido seu dia, mas ela disse que não, que só estava “escolhendo a melhor foto da noite pra colocar no feice”. Então, Carlos respirou fundo, permaneceu de olhos fechados por cinco segundos e, quando abriu, notou que ela nem havia desviado o olhar do smartphone. Não percebeu sua irritação.

      Com calma, Carlos se levantou, afastou-se da cadeira, empunhou a faca com firmeza e a enfiou de súbito na jugular de Ana. Ela lhe olhou com terror e, finalmente, largou o celular sobre a mesa para levar as mãos ao pescoço. O sangue lhe entupia as vias respiratórias e a faca a perfurava até o cabo. Ana debatia as pernas desesperada enquanto sua expressão se tornava cada vez mais sinistra. Carlos rio do desespero de Ana, pois ela não conseguia balbuciar palavras com as bolotas viscosas se acumulando em sua boca. Finalmente, a mulher emitiu um último urro, pendeu para o lado e, caída, esvaneceu. O casal ao lado se divertiu com a cena. Um executivo, que jantava só, foi parabenizar Carlos pelo espetáculo. O garçom, enquanto recolhia o corpo de Ana, ofereceu a Carlos uma mesa limpa e arrumada para que ele pudesse completar sua refeição. Ele agradeceu e pediu desculpas pelo inconveniente. Antes, Carlos sacou o seu Iphone do bolso, fez uma foto do homem simpático escoltando a defunta e postou em seu perfil do Facebook. Várias pessoas curtiram e compartilharam. E até quem não sabia o que dizer, claro, comentou declarando que não sabia o que comentar.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Bolinha de papel que deveria estar amassada na lixeira.

 

     Amar o percalço, amar o tropeço, a ansiedade da queda, amar a dor. Amar o sangue escorrendo viscoso, amar o ardor, amar as células morrendo, amar o cascão da ferida embrutecendo frágil. Amar a crosta perdendo as raízes, amar a cicatriz enfeitando a pele, a lembrança do corpo caindo em suspensão. Amar a expectativa, amar a indefinição, amar o caminho, amar a estagnação, amar o que prossegue, amar ignorando que se ama, amar brincando, amar perfurando a carne sem tocá-la, amar reincidindo num ciclo vicioso atemporal, amar mesmo que feda à cagada, amar, sobretudo, para inventar o amor no infinitivo e, assim, amar independente disso.

sábado, 10 de novembro de 2012

Um maldito par de pernas.

 
      Olívia crê que o senso de coletividade é capaz de vencer injustiças. Olívia crê que pequenas atitudes geram grandes transformações. Viver com Olívia é morar num sonho onde a força das ideias alteram engrenagens que movem a sociedade há milênios. É passear por belos campos onde se cultiva a ilusão de que o desejo de transformar é superior à força do Estado. Para Olívia, a opinião é ferramenta e não um simples acessório. Olívia acredita que, unidos pela mesma causa, podemos transcender o tempo de gerações e, sem qualquer contexto político ou disposição social, somos capazes de avançar de forma mais igualitária e pacífica. Ela confia que, em um mundo movido por vaidade, a boa intenção é capaz de “inflar a massa” e torna-la mais solidária.
      Como está claro, não consigo achar qualquer justificativa para continuar com Olívia, além de seu maldito par de pernas. A questão é: está cada vez mais difícil ignorar minha sensatez e a megalomania infantil dela me aborrece desgraçadamente. Daqui a pouco, estou fazendo minha parte para acabar com o efeito estufa ou compartilhando mensagens virtuais em favor de oprimidos. Problemas que existiam, existem e existirão independente de qualquer coisa que eu faça ou deixe de fazer. Não vou me permitir ter a consciência tranquila por participar de algo que não está sujeito a mim. É paranoia e piração demais para minha cabeça.
      Me prostro no parapeito do terraço e, levando a mão ao coração, penso em Olívia e em como ela é desprezível. Como Olívia me corrói, como uma doença venérea que peguei naquela noite de sacanagem em que fui condenado a essa mediocridade ingênua. Rogo para que Olívia perca as pernas para eu não ter mais justificativas para venerá-la na outra vida. Que ela se amarre em uma sumaumeira gigante, ameaçada pela construção de um condomínio, e uma motosserra dilacere seus membros, bem devagar.
      Mas, rendido, amo, amo, e, no fundo, me atiro por Olívia. Sonho com suas causas, me provando que outro mundo é possível, que a morte é apenas uma das possibilidades. Enquanto caio, condiciono meu cérebro a ignorar a queda, a aceitar que milagres são reais, que a vida não permite tiranias como a que apliquei a mim. Agora sei que revoluções pessoais são possíveis através da desmistificação da realidade. Agora sei que ela estava certa. E como é maravilhoso perceber que Olívia sempre esteve sã, que as leis são relativas, que o amor supera o caos e a maldade e voo, voo. Voo como Ícaro, como Neil Armstrong, como Peter Pan, como Superman, como Arthur Dent...
      Dois milésimos de segundo depois, claro, meu crânio já estava rachado em tantos pedaços que não puderam montá-lo de novo. Ironicamente, terminei protestando, entre o meio-fio e a pista, fechando a rua e, morto de vergonha, atrasando o compromisso dos outros. Tive que ser sepultado em caixão fechado, uma choradeira do caralho. Infelizmente, Olívia não entrou em depressão e continuou lutando por uma “sociedade melhor”. Juntou uns loucos e fez uma manifestação “contra o suicídio, a favor da vida”, uma tristeza. Minha melhor herança foi ter permanecido na memória de todos como um cara legal, como alguém humilde que nunca quis fazer a diferença ou “aparecer”. Como uma pessoa consciente de si e da pequeneza de sua vida em relação à existência de todo resto. E, ainda bem, ninguém nunca soube que morri como um visionário.




sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Constatações.

 

      Uma nesga de luz invade a fresta da cortina e se esparrama esquálida sobre a cama. Há partículas de poeira suspensas indefinidamente, estacionárias. O sossego consome o quarto, o degenera, e já não sei se habito o quarto ou se moro no silêncio. Tudo é vulto, imediação uniforme, forma contínua ausente de princípio. As sombras ocultam detalhes e, irreconhecíveis, meus objetos são tralhas desorganizadas pelos cantos. Na estante, as palavras murmuram canções dionísicas e embalam pecados. A realidade está imaculada pelo medo cego de quem lhe inibe as vísceras. A vaidade reina lá fora. Mas meu quarto, apagado e tranquilo, é humilde o suficiente para reconhecer que não tem nada a dizer que, realmente, valha a pena ser dito. Solto um peido, amanhã não tem trabalho, durmo, sonho com Isabelle Adjani, sou feliz.

domingo, 7 de outubro de 2012

Engolindo Caio.

 

   O desgosto que me dá a masturbação egocêntrica, a autoafirmação vaidosa, o compartilhamento travestido de boa-vontade para disfarçar a carência por atenção. A vontade de vomitar que me embrulha o estômago quando vejo as irrelevâncias da vida promovidas como se fizessem diferença nos rumos de quaisquer outras vidas. A cegueira coletiva que impossibilita enxergar o quanto somos dispensáveis e que não passamos de distração uns para os outros. É a literatura descontextualizada resumida a frases de autoajuda ridículas. É a preguiça de pensar. São os gatinhos que atacam minha asma. São discussões descabidas tentando converter opiniões inúteis, como são quase todos os juízos individuais. É o riso fácil por piadas-prontas e absurdamente previsíveis. É a celebração do coletivo como se o coletivo não fosse hipócrita o suficiente para dar a falsa impressão de que celebra a persona. É a disputa para ver quem grita mais alto que faz meus olhos quererem chorar lágrimas de sangue. É a falsa impressão de que o que se pensa merece, deve, precisa ser externalizado para fazer sentido. É a autopropaganda barata vendendo coisas sem valor. É o senso comum, a total falta de bom-senso, de senso estético, de senso do ridículo. É a privacidade publicada para agradar uma audiência imbecilizada e mimética. É a vontade de comentar “caguei” em tudo. É o programa de auditório de domingo colaborativo onde a plateia faz questão de participar com um sorriso na cara. Eu a escolhi porque eu acordei com muita dor de cabeça disso tudo e, para mim, o livro iria ficar bonito atravessado na garganta dela, que nem o Patolino naquele episódio do Pernalonga. Foi só por isso.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Partir.


Rasgar as velas, quebrar o leme, furar o casco, inundar o convés, queimar o mastro, pesar a proa, tombar à bombordo. Derivar léguas, amparado à carranca da nau, até o hipertônico mar virar barro indefinido entre o Equador e Capricórnio. Desentender o mundo. Naufragar cercado por paraísos idílicos, cheios de índias de peito de fora, em uma quinta-feira escrota fedendo à solidão e peixe podre.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Meu lixo.

 

      Sob teu nome corre um rio de lama cuja nascente brota do meu peito. Tua carne tenra assa na brasa de verbos infinitivos procrastinados, se esvaindo incertos. Um teto de palavras tristes pende diante da insinuação de um futuro pré-programado. Seríamos lúcidos e felizes? A pergunta ressoa questionando o Tempo sobre seus desenlaces e inevitabilidades. Ouço o eco vindo de lá, de um lugar inexistente que, a princípio, não difere de onde estou agora. Somos portos à deriva num mar de tédio e mediocridade. Prosseguimos, firmes, sobrevivendo a uma sucessão de horas vãs entulhadas de acontecimentos inúteis. Só temos a vontade e o medo como abrigo.

sábado, 8 de setembro de 2012

Bundas.

 

     Edu avaliava bundas a partir do desconforto ou prazer que a possibilidade de cheirá-las lhe dava. Bundas grandes demais, murchas, encorpadas desproporcionalmente, salientes de forma equivocada, costumavam fazê-lo torcer o nariz. Já as nádegas de contornos herméticos, empinações curvilíneas, extensões hormônicas de cinturas magras, lhe roubavam os olhos e seu carinho. Nunca soube de onde trouxera o estranho costume de admirar traseiros. Coisa que vinha de criança, época em que a visão alinhada aos rabos lhe permitia olhares furtivos sem tantas discrições. As carnes pendendo sobre a parte de trás das coxas, aquele prolongamento estranho de costa, a forma como nunca conseguia encontrar uma bunda essencialmente semelhante à outra... tudo parecia a Edu curiosamente divertido. Só aos 12 anos ele viu uma bunda desnuda. Só aos 14 entendeu as possibilidades que ela oferece. Só aos 17 tocou em uma bunda alheia. Aos 18, percebeu que seu amor era universal e anônimo.

     Na maioria das vezes, ao contrário do que possa parecer, Edu não sentia qualquer ímpeto sexual contemplando as belas nádegas que lhe cruzavam o dia. Era um voyeurismo sem maledicências, um afeto altruísta que não esperava nada em troca. Edu comparava as bundas com as obras de Niemeyer: esculturas modernistas em formas ausentes de principio ou fim. Obras de arte cíclicas, cheias de contornos e entornos que, apesar de não raro ocupadas, poderiam muito bem ser apenas admiradas em sua completude. Hipótese absurda, sabia Edu, e por isso segredada apenas à gente de confiança que não lhe julgava mal. Ainda que quase todos tenham anomalias em seu modus operandi, conscientes ou ignoradas, é mais seguro omitir possíveis perversões e seguir o rebanho. A diversão está na divulgação de lixo pessoal da mais alta irrelevância, uma orgia seborreica de vaidade e orgulho. Amores por bundas inominadas, por alguma razão, são execrados. E nem era bundas peludas. Edu achava o rebanho engraçado.

    Um dia, atravessando a Avenida Rio Branco, uma mulher ornada com um vestido floral assassinou Edu. Era uma garota de porte médio, com cabelos loiros encaracolados que pendiam sobre os ombros, corpo esguio e canelas tão brancas que reluziam na claridade da manhã. Edu reparou em todos os detalhes: os sinais na parte de trás dos seus braços, suas unhas pintadas num rosa quase invisível, a cicatriz enigmática na sua panturrilha, o piercing saltando da ponta de sua orelha esquerda... Ele a seguiu, variando a distância, por quatro quarteirões, determinado em nunca mais perdê-la de vista. Aquela, pensou Edu, era a bunda da sua vida. Mas eis que, cruzando a Rua da Alfândega, com os olhos fixos no rebolar do rabo, ele não percebeu quando o semáforo mudou de cor. Edu nem viu o que o acertou, só percebeu que estava entrevado no asfalto e com muito sangue na boca. Por justiça divina, a mulher do vestido floral correu, curiosa, para tentar ajuda-lo. Na mesma hora, outra nádega se aproximou pela direita e, vesgo, com a cabeça virada para o lado, Edu achou um ângulo em que podia apreciar tanto uma quanto outra. Dividido entre a lingerie vermelha e o jeans atochado, sob a sombra de duas bundas lindas, a visão de Edu foi escurecendo aos pouquinhos até, finalmente, ele dar graças a Deus e morrer aliviado.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Nice trip.

 

      Observo a janela imóvel e, por trás dela, o terreno se move como um caleidoscópio variando suavemente entre esquerda-direita. Talvez seja a janela que esteja oscilando, deslizando sobre a parede, não tenho certeza. A paisagem é vazia, plana, coberta de por um campo infindável de centeio. Ou quem sabe seja trigo. Provavelmente cevada. Não faz diferença. Penso em quantas coisas não fazem, realmente, diferença e, de repente, nossas vidas parecem detalhes. Imagino que se tudo acabasse, seria como se nada houvesse começado. Deixaríamos como vestígios pilhas de concreto e aço, montes de papel, moradas inúteis que revelariam sua podridão sem que ninguém pudesse mais censurá-la. Agora chove lá fora. Sei que montes de pessoas estão juntos, aquecidos, agrupados para se esquecer do frio e para rir de coisas que não me divertem. Fecho a janela, deslizo a cortina, deito no chão e peço ao teto para que caia sobre mim enquanto eu durmo.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Tatu-bola.

 

Cessa a tarde com o bule apitando no fogão. O céu está saturado num dégradé azul-laranja. Aqui embaixo, nós existimos à parte, somos estranhos no ninho, comida regurgitada, falhas na Matrix. O silêncio quase me ensurdece. Tá tudo tão quieto que, de tão silenciosas, as coisas nem parecem existir de verdade. Às vezes, acho que se eu pressionar forte, posso te liquefazer numa poça de Cheirinho de Bebê. Acho engraçado tu ter cheiro de passado. Tua carne é tenra como um travesseiro velho. Sei que os átomos nem se chocam, que os elétrons faíscam, mas minhas mãos estão cheias de ti. O chá de erva-doce está pronto, mas eu odeio chás. Eu bebo porque tu gostas. Eu escrevo porque tu ris. Só anoitece pra fazer frio no nosso deserto de enjoos, paredes descascadas e formigas assassinas. Acho que amanhã não chega pra sempre.

sábado, 23 de junho de 2012

Saguinha.

 

      Corria um vento frio pela pradaria recendida à podridão que brotava dos homens que viviam ali. Como soldados nas trincheiras, camponeses em seus casebres de barro batido lutavam contra a sorte para renascerem no dia seguinte. Comiam da própria carne e bebiam o suco amargo do riacho fétido que corria por entre o lixo.  O cansaço e a revolta germinaram e amadureceram coléricos, tal qual uma sarça ardendo no deserto. Um sapo coaxou no lodo quando Ezequiel, do alto de seus doze anos, guiou uma orda de humanos encarniçados em direção à Cidade.

      O povo chorou quando se deparou com os irmão da margem aposta e abraços foram ofertados. Casas foram queimadas, as ruas foram manchadas de sangue, crianças padeceram e, a partir dali, a liberdade foi confiscada e línguas passaram a se contorcer no chão. Atlas, não suportando mais o peso dos braços, deixou rolar o mundo sobre os pés. Os renegados mandaram todos se foderem e, dizimada a Cidade, agradeçeram a Deus pela graça alcançada pouco antes de se entregarem à esbórnia por semanas a fio de, segundo Ezequiel, merecida putada.

sábado, 9 de junho de 2012

Minimalismo.

Um castiçal empunhado feito espada enquanto o alabastro derrete sobre os dedos. As velas se sustem mais por inércia do que por oxigênio. Altas tretas.

sábado, 2 de junho de 2012

Comunicado

Fui ouvir o Bolero de Ravel sendo tocado por um saxofonista bêbado numa tarde fria em Praga. A Ponte Carlos estava deserta e um pombo cagou na minha mão. Depois, escureceu e as pessoas saíram para passear sentindo o vento frio do sul, seguindo pela margem esquerda do Vltava. Era dezembro, haviam luzes de Natal e o cheiro de batatas cozidas impestava o ar. Ainda que ninguém acreditasse em Natal, tudo ficou bem.

sábado, 26 de maio de 2012

Epílogo.

      Velhas carpideiras choram de nostalgia no porão da casa. Os sentimentos padecem nus antes de terem tamanho pra vestir roupas, jazem sob a cruz diária no meio do cansaço. Te vejo por entre a frestra de uma porta multimensional, dormindo quieta no meio do vale Marineris, com uma solidão tão grande que mal cabe no deserto. Me contento, ou melhor, me conformo, em admirar a areia acariciando tua cara, já que os dedos não alçam. Minha liberdade tá condicionada à uma espera que, provavelmente, é só a antecipação de outra maior. Mal te escuto, só ouço o vento soprar quieto. Rezo pra que eu não esteja cansado demais pra ouvir qualquer coisa. Procuro ainda um espaço, respaldado de razão, pra te encaixar no meio dos meus problemas.

sábado, 19 de maio de 2012

Dona Tereza.

      A indiferença de dona Tereza em relação a tudo era tão notável que, olhando fundo em seus olhos, qualquer um poderia perceber que eles já não se interessavam em enxergar qualquer coisa que lhes atravessassem as retinas. Aliás, para a senhora, melhor seria se elas tivessem apagadas. Os olhos de dona Tereza olhavam para dentro, para as memórias escondidas sob os ralos cabelos brancos, vasculhando cacos de passado que, às vezes, rasgavam o peito de uma moça de 15 anos que escutava Noel com o ouvido colado no rádio. O presente e o futuro se misturavam lentos, indissociáveis, numa sucessão de horas, mais ou menos iguais, que pareciam um longo, gigantesco, dia que se esqueceu de acabar.

      A nora e o filho de dona Tereza insistiram para que morasse com eles e com os netos porque, segundo os parentes, ela estava “idosa demais pra viver desacompanhada”. Dona Tereza, na época, achou muito engraçado o eufemismo que criaram pra dizer que ela estava “muito velha pra ficar sozinha”. Ninguém sabia, mas a mulher de 92 anos já era velha e sozinha há muitos anos, antes mesmo de perder os dentes, de a gravidade lhe despencar os peitos, de casar, de surgir o primeiro sinal de ruga na testa e de sangrar na menarca.

      Dona Tereza ainda resistiu alguns meses, explicou que estava bem no casarão antigo cheirando a mofo, que não gostava de apartamentos, mas sua pirraça foi encarada como “teimosia de velho”, como bem afirmou o próprio filho. Para não se sentir ainda mais desmoralizada, para não entristecer mais ninguém, por orgulho e decência, a mãe cedeu imaginando que não precisaria suportar por muito tempo.

      No início, dona Tereza ainda tentou interagir com os netos, com o filho, a nora, mas todos pareciam apressados ou cansados demais para lhe dar atenção. Não entendiam ou não se interessavam pelo que ela falava e, percebendo que obrigava os outros a serem forçosamente atenciosos, a senhora optou por só se manifestar quando fosse solicitada. Como ninguém fazia muita questão de ouvi-la, pouco dona Tereza falava. Ela passava os dias tricotando na varanda enquanto escutava o chiado do rádio. Felizmente, a velhice não lhe tirou a independência e a saúde e, ainda que estivesse sozinha, ela podia sobreviver decentemente.

      Há pouco tempo, dona Tereza havia começado a fingir que estava gagá. Em protesto à desatenção da família, ela começou a sujar as paredes com cocô, derrubar comida no chão propositalmente, beber água na vasilha do cachorro, quebrar porta-retratos... A esperança era que lhe mandassem para um asilo, para o cemitério, ou para qualquer lugar em que sua presença fosse anulada para que ela não se sentisse tão ignorada. Tudo que fizeram foi contratar uma babá para lhe vigiar, uma moça tão boazinha que dona Tereza ficou com pena de sacaneá-la. Depois de semanas de plano frustrado, numa manhã de domingo, a senhora se dependurou na janela do quarto e caiu do oitavo andar no terreno baldio vizinho ao edifício.

      O problema é que dona Tereza ocupava os espaços com uma ausência tão grande que, quando saia, as pessoas só notavam que ela havia se recolhido para o quarto porque a sala ficara mais barulhenta. Como o quarto de dona Tereza era seu grande refúgio, o único pedaço que sobrou de sua antiga casa (agora vendida), ela trancava a porta por dentro e nem mesmo a diarista podia entrar lá. Dessa forma, aquele cômodo existia à parte do resto do apartamento e era desprezado tanto quanto a sua dona. Cinco dias depois da queda, o filho, espantado, comentou com a mulher: “Tem alguma coisa diferente na casa...”. “Fiz luzes no cabelo.”, ela comentou. “Ficou bonito”.

sábado, 12 de maio de 2012

Justiça seja feita.

      “Justiça seja feita, analisados a fundo, todos somos culpados. Nosso crime, capital e inafiançável, é existir conformados em apenas existir. A vida é um acidente, um acaso, um contratempo. Qualquer justificava atribuindo a ela razões insustentáveis só servem para mostrar o quanto estamos perdidos. Tão perdidos quanto estávamos quando ainda idolatrávamos o fogo. As mudanças na sociedade, em dez mil anos, são um grão de areia no deserto silencioso preenchido pelo tempo desde a origem de tudo. Nossa passagem por aqui é tão insignificante que se a humanidade simplesmente sumisse hoje, a alteração que isso provocaria no universo seria o equivalente a de um cubo de gelo subindo o nível de todos os oceanos.

      Todos somos frutos do caos e da desordem. Reordenamos as coisas como se pudéssemos resignificar o que é inalterável, como se fossemos produtivos sendo úteis a causas perdidas, como se valesse a pena seguir em frente obedecendo a ordens por misérias, cumprindo rotinas desgastantes, dando justificativas a estranhos como se isso fosse relevante, nos relacionando como se entretenimento barato aliviasse o peso do tédio, satisfazendo nossa vaidade como se fossemos dignos de ser notados... É inútil se preocupar em agradar ou ser aceitos por seres tão dispensáveis. A realidade é tão frágil e ilusória que, a qualquer momento, tudo pode se desintegrar num capricho quântico do espaço.

      Os únicos que se salvam são os loucos, os vagabundos, os inúteis, os artistas que, embriagados pela lucidez, conseguem perceber que nada vale a pena, nem nunca valeu ou valerá. Os sábios que não ignoram o absurdo da vida e o encaram como se ele não pudesse destruí-los. Outsiders que admiram de longe a sociedade prosseguir ingênua cheia de cegos simples, inocentes, ocos, maus, egoístas e idiotas caminhando devagar para morte com sorrisos mentirosos no rosto. Os desajustados são os únicos que conseguem vislumbrar o prazer de existir sem rédeas ou verdades pré-fabricadas. Niilistas que encontram redenção no estado natural das coisas, na incerteza palpável que guia nossa existência. Eles se divertem juntos, unidos pela descrença nos outros e pela serenidade de quem tem toma a consciência de que a vida não é prática, é densa, simbólica e indecifrável. Consolados pelo desprezo, eles morrem em paz, todos os dias.”

      O desabafo foi achado no bolso de um jovem mendigo que, sucumbindo à cirrose, morreu se cagando. Infelizmente, estava tão sujo e nojento que nunca foi lido. Pelo menos o corpo do rapaz, tão podre quanto o papel, serviu para ajudar nas aulas de um curso de medicina, que, por ironia do destino, era dado em uma faculdade particular. O preço de duas mensalidades, por incrível que pareça, era maior do que o valor que aquele cara conseguiu gastar em cachaça e comida durante toda sua vida miserável. Ele ficaria feliz se soubesse que, ao menos morto, sua vida pôde ganhar algum sentido. Ficaria muito contente ao ver garotos ricos e mimados vomitando enquanto examinavam suas entranhas, secretamente sentindo um nojo enorme de tudo que ele foi.

sábado, 5 de maio de 2012

Essa é verídica (só essa, juro por deus).

      Havia uma senhora morena magra de cabelos crespos bagunçados, bermuda surrada, blusa gasta e sandália de dedo. Vou chamá-la de senhora porque não sei seu nome e, ainda que soubesse, não seria o suficiente pra tira-la do anonimato a que nasceu condenada. Ela é companheira de outros tantos milhões que vivem às margens disso que chamamos sociedade, que recebem como cumprimento viradas de cabeça fingindo ignora-los. Eu sei que há muitas senhoras morenas assim por aí, mas eu não me arrisco em chutar uma idade, o que poderia facilitar a produção de uma imagem mental, porque ela aparentava ser muito pobre. Não sei se pobre a ponto de não ter nada, mas era pobre o suficiente pra não ter o direito de se preocupar com muitas vaidades. Quando se é pobre, não dá pra enganar o tempo: viver exige esforço, é preciso andar debaixo do sol, suar, usar as mãos, cansar as pernas, esperar e trabalhar muito até a hora de dormir. Não sobra dinheiro pra gastar com tratamento capilar, pilates, ginástica, roupas bem acabadas, sapatos bonitos, jóias chamativas, botóx, peeling ou os novos lançamentos de maquiagem da Avon.

      No entanto, a vida, justíssima como só ela consegue ser, deu àquela senhora uma forma de esconder a passagem dos anos e envergonhar quem tivesse coragem de lhe virar a cara: um tumor, uma carne estranha, uma parte avulsa que brotava da lateral esquerda de seu rosto e lhe cobria e deformava boa parte da cara. Então, aquela senhora, que nasceu já não tendo nada ou quase nada, recebeu como presente uma marca gigante que lhe atraía olhares indesejados, como o meu.  Eu a vi quando estava dentro do carro, preso em um engarrafamento, enquanto ela se dirigia a um banco. A senhora parou em frente à lateral envidraçada da agência, olhou seu reflexo no vidro e ajeitou os cabelos. Depois, andou mais à frente, se apoiou com as duas mãos na porta e aproximou o rosto pra tentar olhar através do espelho pra o interior do prédio. O carro andou e eu fui embora, mas, pra mim, aquela senhora ficou lá pra sempre.

sábado, 28 de abril de 2012

Cansaço.

      A resolução lhe colocou em posição fetal sob a cama que recendia a sexo. Ela refletiu muito antes de finalmente se acertar com suas opções. O foda de escolher é que todas as alternativas se anulam e, em universos paralelos, certamente seguimos futuros com menos remorsos e corações mais leves. Se formos sinceros conosco, vamos perceber que temos bem mais arrependimentos do que nosso orgulho nos permite admitir.

     Vivian, infelizmente, não conseguia deixar de confessar pra si suas culpas. Estar ali regredida, além de fodida, era consequência direta da sua inabilidade de ignorar o que não lhe convém. Dentre as coisas que não lhe convém estão: programas de auditório, fanáticos religiosos, shampoos com vida útil prolongada através do acréscimo de água, conversar com alguém com pelos avulsos saltando do nariz e se apaixonar.

     Depois de gozar, ela sentiu vontade de escrever poesia concretista e, a partir daí, soube que estava fadada a tomar no cu. Inventou uma desculpa qualquer pra dispensar o cara e, se pudesse, arranjaria um pretexto ainda mais idiota pra extingui-lo do universo. O cara, longe de ser um mau caráter, havia a pouco começado uma amizade com Vivian que teria tudo pra se prolongar pelos anos. Mas ela preferiu sacrificar os laços antes que eles pudessem se transformar em nós, enfeites pra presentes, ou algo ainda mais triste e assustador pra complementar essa metáfora.

      Verdade é que, independente da nossa capacidade de antecipar ou substituir dores, certas angústias são inevitáveis. Vivian classificava a sua dor como um efeito colateral de um remédio amargo. No entanto, sejamos realistas, se houvesse remédio pra esse tipo de coisa, a indústria farmacêutica seria rica a ponto de dominar o mundo e seus magnatas poderiam, sem dificuldade, comprar o trono do Papa.

      Tomada a decisão, Vivian se afastou e deixou que o tempo fizesse o que ele faz de melhor desde sempre: desfazer as coisas. No entanto, haviam lapsos e silêncios que entrecortavam as obrigações diárias e a memória, infelizmente, é bicho que tem vontade própria e não pode ser castrado. De repente, a distração virava tratamento homeopático enquanto o sentimento crescia descontrolado entupindo de merda o cérebro de Vivian. Mas ela resistiu confiante, se enganando como podia, enquanto a DST lhe comia as carnes.

      Numa noite de insônia (se seguiram muitas noites em claro depois da tragédia), Vivian estava relembrando a última vez que havia lhe visto. Os olhos molhados implorando explicação, o desconsolo quase infantil de criança deixada na porta do orfanato, a postura cabisbaixa de quem é humilhado com um chute no saco. Revisto assim, ele parecia mais um menino inofensivo e frágil, carente de afago, do que um homem inconsequente capaz de provocar qualquer contrariedade. Vivian chorou e se lamentou sem culpa naquela noite.

      Mas, como quase tudo que é adiado, aquilo já havia passado do ponto e se tornara tarde demais. No coração sobrecarregado de Vivian, o sangue amargado entupiu a aorta, o ventrículo direito e, a essa alturas, as valvas enlouqueceram. Ela ainda soluçava e balbuciava o nome dele quando seus átrios se contraíram pela última vez. A pressão do sangue que entrava naquele beco sem saída foi tão grande, que o coração de Vivian, resignado, simplesmente explodiu. E, na verdade, a paixão escondida na caixa torácica era apenas 265 gramas de músculo cansado.

sábado, 21 de abril de 2012

Uma vez no Arizona.

      Os pingos da torneira ecoam feito meteoros despencando no deserto frio do Arizona. Pedras perdidas que rolam do céu e explodem igual os estalinhos de São João. E eu acendo a fogueira no meio do quarto e canto, danço com apaches bizarros enfeitados com cocares de pena de urubu. E a noite escorre trôpega entupindo as artérias da vida com a possibilidade do absurdo. Penso em índios mais vestidos que os daqui, em deuses mais misteriosos, em tempos menos apáticos, em lugares menos escaldantes, penso em João Batista que falava de mudar caminhos para encontrar a luz, se recolher para entender melhor a nós mesmos. Mas eu nem sei se gosto tanto assim de mim, só acho mais perguntas ao invés de respostas e já tá tão tarde, eu acho que a luz dói nos olhos, acorda quem não deveria, começa o que deveria parar...

      Então eu decido que antes de tudo desmoronar, enquanto ainda posso mandar a lógica pra perto da puta que o pariu, levo tua mão à boca pra beijar teus dedos e sentir o gosto do teu passado. Te dou um colar de dentes de coiote e peço a Geronimo pra benzer nossa união: sacramentada em solo sagrado, testemunhada por fantasmas que manterão nosso segredo selado em suas bocas de línguas amputadas. Depois a gente fica abraçado sentindo o chão tremer enquanto caem os meteoros, que só não nos atingem por dó. Não demora começam a dançar em volta da fogueira, felizes por estarmos juntos ali. E, de repente, nossos rumos se cruzam, o universo conspira a nosso favor, quem sabe as coisas se acertam... Nem que seja só até daqui a pouco, antes de começar o barulho, dos apaches morrerem de novo, dos meteoros não extinguirem mais ninguém e de varrerem as cinzas, que eu tive tanta pena de fazer, pra debaixo do tapete.

“Agora vocês não apanharão chuva, pois cada um de vocês será abrigo um para o outro. Agora vocês não sentirão frio, pois cada um de vocês será a fonte de calor do outro. Agora não há mais solidão, pois cada um de vocês será a companhia do outro. Agora vocês são dois corpos, mas havia apenas uma vida antes de vocês. Agora vão para seu lar para celebrar os dias de sua união. E que seus dias sejam longos e bons sobre a Terra”.

Oração apache.

sábado, 14 de abril de 2012

O desuso da serventia das coisas.

      Uma das melhores formas de gastar dinheiro é usá-lo pra comprar livros fodas que eu vou ter preguiça de ler. Livros ótimos que vão ficar em cima da estante, pra eu admirar da cama antes de dormir, prometendo abri-los no dia seguinte. A preguiça vem do excesso de coisas mais práticas e inúteis a se fazer (como escrever isto, por exemplo). Deixo guardados os livros com capas misteriosas, com insetos nojentos ou bocetas raspadas, cujas páginas, escritas por gente que eu gostaria de ter como amiga, vou ler ao acaso, quando me sentir entediado demais. Os livros são refúgios que nos preenchem quando o nosso silêncio grita que nem galinha sendo assassinada.  

      Os livros que eu não leio servem pra me lembrar de que há uma descarga possível, pronta pra me levar pelo meu esgoto quando a vida ficar entupida de merda. Eu os pego da estante, passo a mão pelas suas folhas, 367, e o tato é suficiente pra eu saber que ainda existem histórias que não parecem absolutamente desnecessárias. Pouquíssimas coisas valem realmente a pena. Tenho inveja dos que não percebem (e por isso não sentem) o esforço necessário pra viver. Cultivo poeira nos livros sob a estante pra fingir que eu vou ter sempre tempo de lê-los, que viver vai sempre valer a pena, que escrever minhas próprias palavras não é, naturalmente, dispensável como os livros que eu compro e tenho preguiça de ler.

sábado, 7 de abril de 2012

Não ressuscitou porque nunca morreu.

      Espelho com moldura de cobre, cômoda negra empoeirada servindo de aporte, o homem se estica pra admirar as rugas. Nos retratos sobre a madeira gasta, o tempo expunha sua força retrocedendo o estrago dos anos. Há mais rugas no espelho do que ele deveria refletir. Prostrado diante do móvel, o homem se concentra nos sulcos da testa, nos pés de galinha, nos cantos flácidos da boca. E depois de quinze minutos de contemplação inútil, de comiseração vergonhosa, eis que o espelho, cansado de ser usado por anos, chateado pelos minutos, se mata num surto colérico. Renegando sua natureza, o vidro se contrai e explode, vazando as pupilas do homem com um pedaço de 33 centímetros de si.

      Quando finalmente se aperceberam da morte, quatro dias depois, a casa já estava tomada pela indecência dos restos entranhando o ar. Ninguém entendeu a brutalidade do que chamaram de homicídio. Ninguém entendeu nada, aliás. Nem a polícia, nem os peritos, nem o zelador do prédio, nem o porteiro, nem os físicos e, por incrível que pareça, nem mesmo as tias carolas tinham uma explicação. A família chorando, os irmãos desnorteados, as filhas em choque, o filho mais velho desesperado, a orfandade trágica como uma Coca-Cola de 2l que chega ao fim antes da sede. E o espelho lá, única testemunha de seu crime, espatifado, manchado com um sangue que não era seu, ressuscitado em fragmentos que tornavam tudo ainda mais confuso, puto da vida.

sábado, 31 de março de 2012

100g.

      Fátima dizia que Valdir não lhe dava mais atenção, que ele havia mudado, que a traição confessa não redimia nada, que sua mãe era uma puta, que seu orifício anal merecia ser penetrado... Enfim, essas coisas que as pessoas falam quando não sabem o que dizer, mas querem gritar alguma coisa. A maioria de nós age assim, aliás, mesmo que nem precisemos gritar pra dizer o que não devemos. Valdir havia traído Fátima com Silvana há duas semanas. Se traição quer dizer: consumação de qualquer interação carnal íntima entre um individuo comprometido e um terceiro, então ele havia sido fidelíssimo até ali.

      Valdir realmente não queria trair Fátima, mas seu desejo por ela havia cessado há três anos e ele sentia saudades de sexo. Além do mais, eles pouco conversavam, pouco dividiam os mesmos espaços e pouco se interessavam um pelo outro. Estavam juntos porque achavam que era o jeito. A vida nem sempre é do jeito que a gente quer e dá preguiça e medo tentar mudar. Assim as coisas iam seguindo, toleráveis, mornas, matando os dois por dentro. Poucas pessoas sabem, mas a maioria de nós, na hora da morte, já tá podre faz tempo.

      Fátima já havia gritado até as cordas vocais se distenderem. Chorou tanto que secou suas glândulas lacrimais. Valdir assistia a cena quieto, paciente, contemplado cinco anos de casamento se concluindo da forma mais ridícula possível. Ela tentou agredi-lo, atirou um vaso na parede, ameaçou se matar. Ele tentou explicar que aquilo só formalizava algo que já havia acabado e que continuar juntos por convenção era ridículo. Fátima não quis nem ouvir e o expulsou de casa. Valdir pediu apenas para usar o banheiro antes de sair. Ele deixou roupas, documentos, o notebook, sua pasta, seu respeito e cem gramas de merda e mágoa entupindo a privada.

sábado, 24 de março de 2012

No final tudo acaba bem.

      Foi no tempo em que eu abria os olhos só por instinto. Naquela época, eu me movia exclusivamente por inércia, levado devagar pelo movimento da Terra. Meus impulsos eram escassos e minhas vontades quase inexistentes. Por alguma razão, não conseguia usufruir da vida como as outras pessoas, aparentemente, conseguiam. Eu me questionava toda noite, antes de ficar inconsciente, o que justificava readquirir sobriedade no dia seguinte. Muitas vezes eu ficava horas pensando nisso, às vezes até amanhecer. Eram noites estranhas em que as perguntas ficavam ecoando na minha cabeça, buscando anulação. É claro que eu sabia que minha desmotivação era criminosa.

      Era contra as regras não se sentir bem convivendo com o resto. Mas eu não gostava muito de conviver com o resto. O problema é que eu não tinha motivos objetivos, válidos, pra aquilo. Eu simplesmente não queria. Se eu tentasse explicar, ninguém iria entender, nem eu compreendia muito bem. Além do mais, a confissão pode aliviar a pena, mas não indefere o crime. Assim, tomava todos os cuidados pra não deixar visível meu desinteresse e mentia pra mim tão bem quanto podia.

      Algumas vezes, eu mentia tão bem que esquecia que estava mentindo. Talvez, por breves intervalos, minha mentira possa ter se diluído nela mesma até virar uma poça disforme de incertezas. Acho que, convencionalmente, se pode chamar esse tipo de coisa de verdade. Eu já duvidava de tudo mesmo: de Deus, da morte, das boas intenções, da felicidade dos outros, da eficiência dos cremes dentais, da higiene na fabricação de coxinhas de frango... Desconfiar de quem eu era ou do que eu sentia parecia ser algo lógico. Dessa forma, fiz da incerteza minha guia e reneguei minha identidade por duvidar ser possível defini-la.

      E agora, depois de me exercitar por tanto tempo, eu só relembro dessas coisas pra testar até que ponto eu mudei. Ou melhor, continuo mudando, nunca parei, nunca fui algo. Eu estou muito bem. Como mais, converso melhor, saio de casa com frequência, trabalho menos estressado... As pessoas gostam de mim com mais facilidade. Eu não tenho certeza se gosto de mim, mas isso é o de menos, o que eu penso sobre mim não vale nada. O importante é estar bem. Ou não ter certeza de que se está mal, ou porque se está mal, ou porque haveria de se estar mal. No final, tudo acaba bem. E, mesmo que não acabe, quem vai conseguir provar qualquer coisa?

sábado, 17 de março de 2012

A ponte.

      Tinha o fio, que chamávamos de ponte, e a gente andava juntos sobre ela. Eu a segurava pela cintura, ela ia à frente, eu a seguia com as pernas bambas. E cruzávamos rindo, brincando de quase morrer, só pra chegar do outro lado. O lado de lá era muito parecido ao lado de cá. Dessa forma, aquilo não só era irresponsável e insensato, como também se revelava naturalmente inútil. Às vezes, penso que atravessávamos a ponte só por causa dos olhares curiosos daquela gente com medo de nós. Gente com medo de que caíssemos, medo de verem mortos, de se lembrarem de que morrerão, de ter que telefonar pra os nossos pais... Sobretudo, medo de ter que limpar a sujeira feita pelos nossos miolos. Nossos miolos, se expostos, manchariam tudo.

      Mas eu sabia que ela não ligava pra os outros, muito menos pra o que o que os outros pensavam ou sentiam. Ela, em algum ponto da vida, se ausentou de tal forma que tudo ou qualquer um que a cercava passou a ser encarado como mera paisagem. Como o fundo de uma fotografia escrota, de um pulmão estragado, por exemplo, que não revela nenhum detalhe relevante e está lá só porque não há outra opção. Algo precisa preencher os espaços. Eu tinha um pouco de medo porque eu achava que, a qualquer momento, ela poderia perder o controle e quebrar o caminho e se atirar e cair e voar e acabar. Porque ela também não ligava pra mim ou pra ela. E era por isso que ela cruzava a ponte, e era por isso que eu cruzava a ponte atrás dela.

sábado, 10 de março de 2012

Tá bom.

      Escrevi na dedicatória: “Pra ler quando a tristeza vier e meu abraço não te alcançar.”. Ela teve uma semana escrota. Mas aí eu passei corretivo, quase arranco a página. Quase arranco a página e a como. O livro, por si só, já era um claro sinal de que eu me importava mais do que eu deveria. Oferecer preocupação, abraços imaginários, tudo isso junto com a história mais extraordinária que já li, era me mostrar vulnerável demais. A verdade é que a gente tá sempre querendo viver mais, arriscar mais. Mas, depois de tanto tempo, essa falsa sensação de segurança nos tornou viciados na mesmice das coisas. A gente quer ganhar sem se predispor a perder.
      Ela riu muito quando leu o que eu escrevi. Disse que retribuiria o presente. Eu sei que ela não vai. Não porque ela não quer, mas porque vai esquecer. Tem vontades que são assim mesmo: de tanto a gente adiar satisfazê-las, acaba esquecendo que elas existem. E como eu não tô entre as prioridades... O tempo fode tudo. Não que eu ache que a vida seja urgente, que é necessário experimentar tudo de uma vez, claro que não, isso é putaria juvenil. Mas, sabe: "aproveite agora que você é jovem para sofrer o mais que puder, lhe dizia, que estas coisas não duram toda vida.”. Mas eu sou covarde, inseguro, estranho e meio doido. Eu escrevi: “Só porque nunca te dei nada =)”. E ela riu muito. Tá bom.

sábado, 3 de março de 2012

Bom, eu disse que ia contar mais da história dos meus avós e é isso aí. Ia explicar, mas tô com preguiça e acho que nem importa explicar nada também. Essa foi a coisa mais bonita que eu já fiz, ainda que isso não signifique nada, e mesmo que nem seja.

 

Pra continuar no clima só que ao contrário.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Tchau, vô.

     Meu avô nasceu no sertão, no meio do nada, numa casa distante do mundo. Morreu muito longe da sua terra, perto do mundo, embalado pelo som de centenas de orações que pediam pra ele ficar. Deixou um patrimônio que pagaria uns trinta enterros, mas queria mesmo era ser enterrado dentro de uma rede, como o pai. Foi velado na igreja que ajudou a construir cercado de dezenas de gentes, de todas as idades. Ele não escreveu best-sellers, nem clássicos, não atuou na novela das oito, não marcou mil gols, não compôs grandes sucessos nem dirigiu vencedores do Oscar. A morte dele não passou na TV, não comoveu o país, não foi assunto no dia seguinte, nem virou trending topic do Twitter.

      Tudo que meu avô fez de importante foi erguer e manter sua família, visitar doentes, doar dinheiro, ajudar casais e atuar ativamente na comunidade da sua paróquia. Ele achava que fazer essas coisas era bom, mas não às divulgava. Viveu satisfeito e eu acho até que foi bem feliz, até um pouco depois de ficar muito doente. Gostava de ter por perto a família e de vê-la rindo, por isso, se esforçava pra fazer piadas, ainda que  a maioria nem fosse engraçada. E ele sempre ria das próprias piadas e nós acabávamos achando graça também porque o riso dele era engraçado.

      No enterro do meu avô, as pessoas se despediram cantando e agradecendo pela presença dele em suas vidas. Teve também discursos, piadas, pedidos, consolos, tchaus e um monte de lágrimas. Foi uma das manifestações humanas mais bonitas que eu já vi e tive a honra de participar, mas eu sou suspeito demais pra dizer isso e parecer confiável. Ele pediu muito pra ninguém ficar triste e até que nós tentamos. Havia pra lá de oitenta pessoas, nos olhos da maioria delas dava pra ver a admiração pelo meu vô. E a morte ali, materializada em saudade, em dor, em choros, pondo fim a sofrimentos do corpo, encerrando uma vida tão cheia de pequenas grandes coisas, até que era bonita.

      Vou ter sempre inveja do meu avô. Inveja da sua perseverança, da sua alegria, da sua humildade, da sua solidariedade e, principalmente, do seu amor. Meus avós ficaram juntos por mais de cinquenta anos. Se implicavam, discutiam, brincavam e tinham carinhos como se ainda fossem namorados. Era o melhor amigo da minha avó e ela discursou dizendo: “Ele foi mais que um marido pra mim, foi um pai. Um exemplo. Eu casei com dezessete anos e ele brincava dizendo que terminou de me criar. Foi meu único e grande amor por cinquenta anos e eu hei de amá-lo até o fim dos meus dias. Passei noites em claro sofrendo do lado dele e passaria infinitas noites, se Deus permitisse”. Minha vó tem sido muito forte e eu não fico com tanta saudade porque tem muito do meu avô nela.

      Aliás, minha vó falou uma das coisas mais lindas que já ouvi/li: quando meu vô tava muito doente no hospital, ela costumava pedir pra que nós fizéssemos uma roda de oração quando íamos visita-lo. Numa dessas vezes, ele tava dormindo e não participou. Aí acordou dizendo: “Vocês já rezaram? Eu tava dormindo.”. Daí minha vó disse: “Não tem problema, eu já rezei. A gente não é uma alma só? Então, a reza que vale pra mim vale pra ti também”.

      Lembro que na última viagem em família que fizemos, em dezembro, eu ficava contente quando meu vô sentia vontade de fazer xixi e eu tinha que ajuda-lo com a cadeira de rodas até o banheiro. Também fiquei satisfeito por ter vigiado o corpo dele por exigência maluca do hospital (medo dele resolver fugir, acho) enquanto resolviam as coisas com a funerária. Eu poderia fazer essa bobagem por décadas (o negócio do xixi, não o lance de guardar o corpo, isso seria bizarro) e, mesmo assim, não conseguiria retribuir tudo que ele fez por mim. Eu tenho poucos motivos pra me orgulhar, carregar o nome dos meus dois avôs é um deles.

      Foi bom enquanto durou e, sinceramente, acho que durou o suficiente. O problema é que o suficiente nunca parece ser o bastante. Nós sempre queremos mais do que precisamos. Temos que aprender mais com pessoas como o seu Tiago. Queria ter força, humildade, afeto, resignação e bondade pra viver metade das coisas que ele viveu e ser um quinto do que ele foi. Meu avô foi um cara muito legal.

 

dd Seu Tiago e dona Aldeiza.

 

Mais aqui. Semana que vem eu conto mais um pouco da história dos meus avós. :)

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Mais um sábado.

     Quinta-feira o blog fez quatro anos. Pra uma pessoa desleixada com as próprias coisas, que nem eu, isso deve valer como uns 28 anos, que nem pros cachorros. Eu não costumo dar muita importância a aniversários e datas comemorativas, acho convenções meio bobas (bobas e divertidas). Mas eu vou fingir que isso é extremamente relevante e fazer um post diferente. Eu não tô bem e o meu senso de humor não tá colaborando. O risco de escrever algo dramático, sério e muito ruim é grande demais, então não vou tentar inventar nada.

      Este blog foi o responsável por muitas das coisas mais importantes já aconteceram pra mim. Sério, sem exageros. Outro dia tava relendo os posts antigos, sentindo vergonha alheia do eu-do-passado, e é incrível como trechos significantes da minha vida tão implícitos aqui. Bom, alguns menos implícitos do que eu gostaria. Ler o blog é como admirar um álbum de fotografias pra mim. Vai ver eu só escrevo porque não gosto muito de sair em fotos. E porque essa é uma das únicas coisas que eu faço razoavelmente bem.

      Só queria agradecer a todo mundo que de alguma maneira me incentivou a continuar postando. Claro que não vou citar nomes, né. Mas obrigado a quem lê agora, a quem já leu, a quem lerá, enfim. Eu sei que não escrevo pra ninguém (obrigado também, Google Analytics). Mesmo que só uma ou duas pessoas leiam, pra mim já é o suficiente. Muito, muito obrigado a quem se dá ao trabalho de comentar aqui ou comigo. Obrigado a quem elogia e a quem critica. Ok, chega de agradecer, isso tá parecendo um discurso de miss. Mas, falando sério, eu me importo com poucas coisas, o Vago é uma delas.

Até sábado que vem, espero que as coisas melhorem pra todos nós. :)

ó: bonusonus

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Não fui eu.

      A porta abriu e ela estava lá com um vestido floral branco, uma bolsa vermelha e uma sandália de dedo. Ele achou o vestido infantil demais, mas isso foi depois de acha-la linda pra caralho, então não teve muita importância. Ela usava fones de ouvido e olhava pra o teto. Ele vestia uma camiseta verde com a foto de um simpático zumbi comendo uma loira peituda. Ela ia pra o décimo quarto e ele apertou o botão do nono. Antes disso, no mesmo milionésimo de segundo em que o cérebro do cara reagiu à imagem dela, ele bolou instantaneamente o plano que faria a moça se apaixonar por ele.

      A tática era muito complexa e extremamente bem trabalhada. Consistia numa abordagem direta que plantaria a sementinha da paixão na raiz do inconsciente da moça. O plano era: apertar o botão de emergência do elevador e simular um ataque de pânico. Dessa forma, ela perceberia, sem perceber, que ele não era sem graça e previsível como a maioria composta por quase todos os outros caras. Afinal, transtornos de ansiedade compulsivos e esquizofrenia crônica são coisas que só afetam pessoas com tendências a serem muitíssimo legais.

      Quando a porta fechou, ele esperou ela tirar os fones ou pelo menos lhe lançar uma olhadela de canto de olho. Mas a menina preferiu fingir que ele nem estava lá e continuou com os olhos fixos no teto espelhado. Então, ele sorrateiramente se posicionou em frente ao painel de números e deixou o indicador direito escorregar até o botão vermelho. O elevador parou de forma brusca, o que não estava nos planos. A menina se desequilibrou e deu uma puta cabeçada numa das laterais, o que também não havia sido planejado. E quando eu digo “puta cabeçada”, eu me refiro a uma pancada forte o suficiente pra deixar uma pessoa inconsciente o que, aliás, foi o que aconteceu.

      Ele ficou lá olhando pros lados com uma cara de “não fui eu”. Depois percebeu que não tinha mais ninguém ali e foi socorrer a garota. Mas a tragédia estava consumada e um filete de sangue escorria pela testa dela. Daí o cara que fez a coisa mais sensata que poderia fazer: começou a gritar como uma criança recém-acordada no meio da madrugada por um Teletubbie. Felizmente, já no terceiro berro ela acordou desnorteada. Ele aproveitou o momento, quase tão dramático e comovente quanto o final de Titanic, pra abraça-la forte, como se em seus braços ela não pudesse retornar às garras da morte. As lágrimas em seu rosto camuflavam a vontade de roçar o peito dela contra o seu. Daí ela gentilmente falou:

_ Me solta, porra!

_ Desculpa! Eu pensei que tu tinha morrido de verdade!

_ Como alguém pode morrer de mentira, cara?

_ Jesus morreu de mentira. Foi apenas um gracejo dele.

_ Do que tu tá falando, doido? Por que tu apertou o botão pro elevador parar!?

_ Eu não apertei nadinha.

_ Claro que tu apertou, eu vi!

_ Ê, para de graça. Tu não viu nada.

_ Doido, tu apertou a merda do botão!

_ Não apertei!

_ Beleza. Te afasta de mim, por favor.

Silêncio infinito de dez segundos. Ela tenta desesperadamente fazer o celular funcionar.

_ Olha, já que o elevador deu prego, a gente poderia conversar...

_ O elevador não deu prego! Eu vi tu apertando a porra do botão vermelho!

_ Eu não apertei! Tu tava delirando por causa da pancada!

_ Eu só levei a pancada porque tu parou o elevador, seu idiota!

_ Não grita comigo! Tu tá me assustando!

_ Eu tô te assustando!? Tu é retardado ou quê!? Eu quem devia tá morta de medo de ti, seu doente!

_ Não fala assim comigo! Eu só queria que tu me amasse!

_ Puta que o pariu! Escuta aqui, cara, se tu não parar de falar comigo e ligar pra alguém me tirar daqui eu vou chamar a polícia!

_ Não grita!

_ Eu grito sim, caralho! Como tu ia te sentir se tu tivesse indo pra casa do teu namorado e no caminho um retardado para a porra do elevador e tu desmaia!?

_ Eu não tenho namorado!

_ Claro que tu não tem namorado, tu é um louco!

_ Eu não tenho namorado porque eu não sou gay! Se eu fosse eu com certeza teria um namorado!

_ Cala a boca, merda!

_ Por quê tu continua gritando comigo!?

_ Vai tomar no cu, eu grito o quanto eu quiser, seu filho da puta!

      Ela partiu pra cima dele com a bolsa vermelha em riste disparando tapas e bolsadas em sua cara. Ele tentou se defender como pôde, chorando que nem menino, num misto de medo, arrependimento, humilhação e vontade de fazer cocô. “Para, sua louca!”, “Tá doendo!”, “Minha pele é sensível! Tu vai me deixar cicatrizes!”, “Não fui eu! Juro por Deus!”, “Sou frágil demais pra isso!”. Mas quanto mais ele apelava, mais ela batia enfurecida e a essa altura já estava totalmente fora de si. Então, ele reuniu as forças, fechou os olhos, soltou um grito e a empurrou pra longe. O problema é que não dá pra ir muito longe quando se está presa num elevador, daí ela bateu a cabeça na porta e apagou de novo. Ele olhou incrédulo depois fez a coisa mais sensata a se fazer: começou assoviar aquela musiquinha que o Godinez assovia pra irritar o professor Girafales. Fingiu que não era com ele e esperou o tempo passar.

 

booooooom.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Ler isso pode ser extremamente perigoso.

Eu tava parado esperando o sinal fechar pra atravessar a rua quando o carro parou aí disseram não dá tempo pra explicar entra e eu não ia entrar mas foram me puxando pelo braço abaixando a cabeça e eu ainda ia soltar um grito mas me bateu uma vergonha estranha e até que o cara não tinha jeito de ser sequestrador estuprador agente do FBI vendedor de órgãos tinha uns olhos gentis que me lembraram os olhos do meu cachorro quando pedia comida aí eu fui deixando me levarem e já no banco de trás vi que tinha além do cara que me empurrou uma mulher muito bonita sentada lá e tinha também um senhor no lugar do passageiro o motorista eu não vi porque eu tava assustado demais e porque a mulher era muito distrativa e tava usando uma saia executiva que deixava o joelho rosado dela à mostra aí depois fui notar que tava todo mundo meio de terno troço estranho mesmo parecendo coisa de agência secreta sem falar que o carro era um sedan preto aí cogitei a possibilidade de tá sendo recrutado pelos agentes da MIBI mas se bem que né eu tava em Belém do Pará e puta merda tanto lugar mais descolado pra montar um base secreta onde estudam extraterrestres por que caralhos iam fazer isso nessa cidade mas aí eu entrei numa neura de que poderia ser isso mesmo porque se eu montasse uma base secreta de ETs eu ia escolher um lugar não óbvio já que o intuito de uma base secreta é permanecer escondida e ia ser mais difícil fazer isso em Nova Iorque ou Londres ou Tóquio ou no Rio ou em Oriximiná porque tinha que ser uma cidade pequena o suficiente pra não dar nas vistas mas grande o suficiente pra que a movimentação estranha não chame atenção e nesse hora eu já tava meio puta que o pariu eu vou finalmente ver um grey e eles devem ser muito fodões anos luz à frente da gente com certeza devem ter respostas pra todas as questões fundamentais da vida tipo da onde viemos pra onde vamos  será que a Tereza Cristina morre no final da novela e tudo mais aí lembrei que tinha lido um artigo de gente que faz projeção espiritual e se encontra com ETs em dimensões mais elevadas do cosmos uma viagem assim e diz que eles são guias espirituais mas alguns são bem maus e depois lembrei de um outro artigo esse já mais confiável que dizia que na maioria dos relatos de abduções os sobreviventes descrevem os abdutores como sendo greys e de repente me bateu um medo da porra que nem tá me batendo agora enquanto digito isso porque eu sempre fico com a impressão de que os aliens tão monitorando tudo que a gente fala ou escreve sobre eles porque eles tão milênios mais evoluídos e tem tecnologia pra esse tipo de coisa e só tão esperando a hora certa pra invadir ou nos salvar nunca sei direito mas eu fico com receio porque se eu tivesse essa onisciência eu iria abduzir o cara exatamente no momento em que ele tivesse falando de abdução só de sacanagem e eu não sei se vocês sabem mas abduções não são experiências legais é tubinho na uretra pinça no olho e dizem até que enfiam coisas no cu e como eu não sou gay deve ser um horror mas pensando bem se eu fosse gay ia ser muito escroto de qualquer jeito acho que eu não conseguiria relaxar e curtir o momento então agora eu vou lá na cozinha pegar uma frigideira e colocar debaixo do meu travesseiro ou engolir o orgulho e dormir no quarto dos meus pais ou só ligar a luz mesmo porque ouvi um barulho estranho vindo do pátio e me bateu um cagão filho da mãe e eu não vou terminar esse negócio porque é só uma história maluca e abdução é coisa séria tem gente que vai não volta e a família fica pensando que o cara fugiu pro Caribe ou pro Marajó quando na verdade tá lá pra depois de Eta Carinae e eu acho melhor vocês olharem pra os lados pra cima e pra baixo depois de ler isso porque esses greys são fogo e eu acredito mesmo que ainda que eles sejam inteligentes e lógicos e pragmáticos a natureza cuidou de preservar um senso de humor nem que seja um sadista só o suficiente pra abduzir alguém enquanto se tá falando ou lendo ou escrevendo ou assistindo algo sobre eles e agora só tô continuando isso pra testar até onde vai minha coragem e o meu ceticismo mas vou ficando por aqui porque eu já cansei de abusar da sorte levar um revestrez e ser abusado por ela no sentido não bíblico da palavra pelo amor de deus porque o meu rabo tem mão única e eu pretendo que continue assim se os greys por favor me permitirem.

 

seguinte, vou manter as postagens no Égua, Doido só dia de sábado também por uma questão de total displicência. Obg.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Um verdadeiro templo budista caseiro pós-moderno. (kkkkkk)

      O banheiro da minha casa é uma incoerência. Ele é excessivamente grande e espaçoso (talvez até do tamanho de um quarto) e minha humilde residência é relativamente pequena. A porra do banheiro é quase do tamanho da cozinha (!). Talvez seja porque ele é o único da casa e se sentiram na obrigação de fazê-lo maior do que deveriam. Não sei. Só sei que nem sempre foi do jeito que é. Paredes foram quebradas, a garagem mudou de lugar, o pátio nem existia, um quarto foi construído... Mas isso há tanto tempo que eu nem lembro. Se tudo permanecesse do jeito que estava, e eu tivesse um banheiro com as dimensões médias de um banheiro residencial brasileiro, acho que seria uma tragédia. Talvez nunca tivesse enxergado a real importância dos banheiros. Engrenagens fundamentais nos processos de transformações permanentes que sofremos todos nós.

      Sinceramente, acho que o banheiro é um cômodo injustamente subjugado e mal visto. Acredito que seja porque as pessoas deixam suas sujeiras nele e, por isso, preferem manter distância e impessoalidade. Hipócritas do jeito que somos, temos vergonhas de nossas próprias imundices. Eu sei que o quarto, historicamente, sempre foi o recanto maior do recolhimento, de privacidade e proteção. O espaço de exposição da identidade do seu proprietário e um lugar em que podemos nos refugiar. Mas, pra mim, lugar nenhum da casa supera o caráter simbólico do banheiro: um verdadeiro templo budista caseiro pós-moderno.

      Podem entrar no teu quarto sem bater na porta, mas não há como entrar num banheiro trancado. E se tu trancar a porta do quarto, vão logo desconfiar que estás fazendo o que tu, por convenção, não deveria. No banheiro, tu tem pretexto de sobra pra fazer qualquer coisa que, por convenção, tu não deveria. Basta fechar a porta pra entrar em uma realidade paralela em que o resto do mundo faz questão de não se intrometer. Arrombar um banheiro é uma violação ao corpo do seu ocupante. Recipiente de partes que estavam em nós, quando fechamos a porta, nos fundimos ao banheiro e ele vira nossa extensão. Um assaltante decente que invade uma casa respeita um banheiro fechado. Ele bate na porta e fala: “Lava as mão e sai”.

      No banheiro entramos em contato com o que temos de mais íntimo. A solidão é amplificada pelos pensamentos que ecoam com o barulho do chuveiro. A água remexe nossos sentidos e traz à tona fantasias ocultas, lembranças embaçadas, teorias metafísicas, lágrimas frustradas que perdem a vergonha na cara e escorrem camufladas. Somos superstars, super-heróis, atores dramáticos, encenamos diálogos pós-fabricados, discursos apaixonados, o sonho que será esquecido na próxima manhã... Usar a privada é um convite a reinar na glória de um mundo com jeito de realismo fantástico. Estando nossa merda exposta, não sobra espaço pra ter pudor que impeça nada.

     Arquimedes fez a maior descoberta de sua vida dentro de uma banheira. Arthur Dent começou a maior epopeia que eu conheço enquanto fazia a barba. Picasso pintou um fauno dentro do banheiro de um castelo, sabia que ali era lugar mágico. Janet Leigh só entrou pra história porque foi assassinada enquanto tomava banho. Banheiros são tão especiais que, até meados do século XIX, eles eram cômodos de luxo e raridades na maioria das casas dos países ocidentais. Uma casa sem banheiro não é um lar. É preciso ao menos um puxadinho com um buraco no chão. Quatro paredes de pé no meio do nada com uma porta que se tranque, que seja. Um espacinho que nos convide a uma volta ao passado, à necessidade de pôr pra fora diariamente o que temos de mais primitivo e animal e, por isso, de mais lúdico e infantil. Um regresso à idade em que se sujar não era vergonha e o mundo não tinha limites.

 

ah, só pra lembrar aos ~~gatos pingados~~ que tiverem a infelicidade de vir aqui que eu ainda to soltando pílulas diárias de merdas inclassificáveis no Égua, Doido. (Sério, pra mim nunca fez sentido essa expressão. Um gato pingado é tipo pingado de ter tomado pinga? Por que um gato beberia pinga? E, mais, por que um gato álcoolatra se juntaria com outros gatos bêbados pra ir a lugares pouco frequentados? Seriam gatos percusores dos hipsters? Enfim, tantas possibilidades…)

sábado, 21 de janeiro de 2012

Uma óstia, só que ao contrário.

 

      “A gente não tem nada a perder, só toda a nossa dignidade”, foi o que eu disse. Mas daí ela falou que dignidade não lhe fazia o menor sentido. Confessou que tinha uma autoimagem péssima, que só não desprezava mais a própria opinião porque estava ocupada não ligando pra dos outros. Então, eu argumentei que aquilo era perigoso e que ela podia perder a vida ou algo mais grave. Ela sorriu e disse que nunca se encontrou na vida, logo, perder algo que nunca teve não poderia ser tão ruim assim. Eu achei tudo muito idiota e infantil, mas ela era muito bonita. Beleza atenua quase tudo que é desprezível. Um ‘porém’ distrativo que sempre releva as coisas, se elas não federem demais.

       Eu não percebi a gravidade da situação até descobrir que algo daquele tipo podia ser real. Quer dizer, acho que algo só se torna real quando é, de fato, experimentado. Qualquer tentativa de vivência fora da experiência sensorial é só uma concepção. Dessa forma, o negócio parecia menos absurdo quando estava só na minha cabeça, preso nos limites de uma possível atitude imunda. Sentir aquela coisa pulsando em minhas mãos me causou um horror tão grande que pensei que iria desmaiar. Ela me olhou fundo nos olhos, colonizada, enquanto eu suava frio e prendia o ar. Era como ter entre os dedos a própria vida, ideia bruta transubstanciada em carne viva.

      Ela delirou até ficar fora dela e eu a ocupei como um espírito possessor. Daí o tempo se dilatou indeterminadamente enquanto o quarto se contraia a nossa volta. Eu sufocava espremido pelas paredes e pelo teto que me encaixotavam sem pena. Como um afogado recém-salvo, eu puxava o ar desesperado. Experimentava o mundo envelhecer até finalmente perde-lo de vista. Estávamos compartilhando o mesmo fio de prata e nos tornamos extensões de apenas um troço. Sem querer, abri a caixa de pandora escondida sob milhões de anos de processos civilizatórios e imposições culturais. De repente, num insight que me levou a um choro soluçado, eu compreendi toda a essência da natureza humana. Ela nunca mais voltou.

      Desde o que aconteceu, logo depois daquela coisa trágica, não levo comigo mais do que o cinismo. Desaprendi a ter compaixão, boa vontade, interesse e alegrias. Não enxergo mais pessoas como pessoas. Pra mim, são só seres semiconscientes buscando razões inúteis pra continuar sendo. De alguma maneira, aquilo me distanciou de forma irreversível de tudo que não me parece natural. E agora quase nada me parece natural. Nem saber da verdade me consola. Quem iria acreditar em mim? Como eu provaria? A maioria só acredita no que lhe convém. Vou levar esse fardo horrível comigo até ele ficar eternamente seguro, perdido com a minha consciência. A vida é só uma roleta russa sadomasoquista. Eu descobri quem tá no gatilho.

 

 

 

‘Brigado por ler até aqui. Seguinte, vou tentar manter o Égua, doido! atualizado pela enésima vez. Agora com poeminhas escrotos pra lá de mequetrefes.  Vou tentar atuliazar todo dia, e é claro que eu não vou conseguir. De todo jeito, tô mastigando umas coisas pra garantir, pelo menos, uma semana de posts novos. Então passa lá (ou não também). 

sábado, 7 de janeiro de 2012

Graças a Deus.

     Geraldo, voltando do trabalho, esperava o ônibus ansioso pra conferir o resultado da Mega da virada. Sem grandes expectativas, claro. Só uma nesguinha de esperança dessas que mantém pessoas igual Geraldo vivas, como um prato de feijão velho requentado, uns instintos teimosos ou os quadros do programa do Luciano Hulk. Não se lembrava quais números havia marcado. Jogou sem olhar, como sempre faz. Acredita que a sorte é algo que aparece quando não estamos prestando atenção e que pra atrai-la é necessário respeitar algum mistério. Besteira.  

    Repassando mentalmente os números que viu no Jornal Nacional, Geraldo viaja com o futuro pré-fabricado na cabeça. Na primeira noite, contrataria uma puta de luxo pra tirar o atraso de anos. Depois, viajaria pra Bahia, compraria uma Ferrari, um iate, uma Jacuzzi, uma cobertura no Leblon, a imortalidade, a estátua do Cristo Redentor, o caralho a quatro. Daria uns cem mil reais pra mãe porque não tolera ingratidão e é dona Maria que até hoje lhe faz a comida.

    O futuro milionário se deixa esparramar no banco duro ônibus e vai seguindo com os olhos os postes da avenida Brasil. E um esboço de riso quase expõe os dentes podres que lhe envergonham desde moleque. Ele tem medo de dentista, mas não assume. Ter pouquíssima grana é uma desculpa conveniente pra justificar quase qualquer coisa, e é essa que Geraldo usa. Antes justificar a podridão dos próprios dentes do que roubo seguido de homicídio pra comprar dentadura de ouro, não é?

    Uma certeza estranha invade o peito de Geraldo. É uma dessas premonições raras, que vem em forma de sensação e quase nunca viram futuro, mas que impressionam os mais sensíveis. Geraldo nunca foi muito impressionável. É católico praticante, graças a Deus, mas acredita que sinais do além são mais explícitos que pressentimentos sem sentido. De qualquer modo, assim que desce do ônibus, ele apressa os passos. Sobe dois degraus por vez enquanto seu coração palpita descompassado e um suor frio desce pelas suas têmporas.

    Ele sabe que é besteira, que está agindo feito idiota, que não vai dar em nada, mas não consegue controlar o nervosismo. E agora vai quase correndo, pisando em merda de cachorro, em fralda usada, em vômito (ou coisa pior), quase caindo no abismo, pensando "mas e se...". E dona Maria quase morre de susto ao ver o aspecto perturbado do filho que invadiu o barraco num misto de angustia e desespero.

    Geraldo pega o bilhete na cômoda velha com a mão suada e o olha incrédulo. Nenhum dos números corresponde aos sorteados. Não há um mísero acerto pra dar razão a tanta agonia. Nenhuma migalha de sorte resolveu aparecer, nem por piedade. E Geraldo quase gargalha de si mesmo com seus dentes podres acusando uns aos outros. Rasga o bilhete mais por conformismo que por raiva. Antes de ir comer o feijão com ovo que a mãe já havia posto em seu prato, vai até a janela agradecer Jesus Cristo por ter chegado vivo em casa.