sábado, 1 de outubro de 2011

Vitória.

      Antônio olha para os pezinhos da filha iluminados pelo luar que entra tímido por uma fresta na janela. Vitória dorme docemente em seu bercinho rosa sonhando com cores, formas disformes e o peito de sua mãe. Seu pai, prestando atenção na pulsação de seu peito, é tomado por um medo imenso que mal lhe permite ordenar os pensamentos. O bebê respira tranquilo, mas Antônio não consegue deixar de pensar até que ponto isso é bom.

     Quando sua esposa anunciou que estava grávida, Antônio não se conteve de felicidade e saiu berrando pelo apartamento. Agora, dez meses depois, ele admira o resultado daquela transa mais ou menos enquanto tenta afastar ideias incômodas que lhe tomam de súbito. Pensa em Vitória como um amontoado de células inexpressivas, um filhote sem propósito, um animalzinho sem utilidade. Um bichinho de estimação que sobreviverá de seu trabalho, que custará muito caro e será incapaz de reconhecer e valorizar seu esforço.

     Sua filha terá o que comer, frequentará excelentes escolas, fará aulas de piano, estudará em uma boa universidade e terá um emprego garantido em sua empresa. Mas Antônio acha que Vitória não merece nada disso. Ele pensa em outros bebês, frágeis e vulneráveis como o seu, morrendo de fome, crianças que já nascem condenadas a não ter um futuro. Pessoas que nascem como erros que ninguém quer assumir, mais propensas a se tornarem bandidos, estupradores, assassinos e filhos da puta desse gênero. Gente que é culpada por existir.

     Antônio vê sua filha, mais velha, como uma menina mimada, prepotente e egoísta. Sente pavor de não conseguir fazê-la entender a gravidade que é estar vivo. Acha que não conseguirá ensiná-la a compreender como as coisas são, o que faz elas serem escrotas do jeito que são. Tem medo de ser um pai ausente, de não ter tempo de dar lições importantes à filha; de ser renegado quando ela for adolescente; de vê-la se tornar uma pessoa fútil e interesseira; de ter o desprazer de pagar uma festa de casamento milionária para ela se tornar esposa de um idiota qualquer que pedirá sua casa de praia emprestada e a trairá com putas de luxo.

    Vitória acorda de repente, como se fosse desperta pelos pensamentos sombrios do pai. Não chora, não esperneia, não caga e nem mija, só fica quietinha enquanto varre o ambiente com seus grandes olhos. Antônio olha o corpinho da filha, os bracinhos se mexendo lentos, e sente que poderia desmembra-la usando apenas uma mão. Vitória o olha tão fixamente que se Antônio não fosse tão cético, poderia jurar que a menina o estava recriminando. Ele diz: “Sabe, Vitória, seria engraçado se eu te jogasse no lixo e uma família brega te adotasse e também te chamasse de Vitória”. Ela emite um pequeno gemido, faz um esboço de riso, um leve levantar de lábios, talvez tenha sido só um soluço. Antônio ri maravilhado com a possibilidade de a filha estar condenada a ser uma boa pessoa.

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