sábado, 22 de outubro de 2011

O Paraíso São Os Outros.

      Seu Alberto morreu aos 93 anos. Como todo velho que passou dos 90 que se preze, ele já se organizava para o fim. Dizia à sua família (e a ele mesmo) que estava pronto e não tinha medo. Assumir que se está preparado pra morrer é uma mentira válida e reconfortante, daquelas que a gente finge que acredita por pura conveniência. Além do mais, contrariar alguém que está pra morrer é sacanagem, ainda mais quando isso pode tornar a coisa toda da morte ainda mais assustadora. Seu Alberto não estava pronto mesmo, morrer era a parte fácil.

   Ele acordou numa sala oval inundada por uma luz branca muito enjoativa. Três anciões vestidos com túnicas azuis vieram lhe saudar com um sorriso grande. Deram as boas-vindas e contaram que seus parentes o aguardavam ansiosos. Seu Alberto gelou. Ele havia saído de casa aos 16 anos justamente porque não gostava da família na qual tinha nascido. E lá estavam seus pais de braços abertos, descarados, buscando reconciliação. Abraçou-os por medo de causar má impressão. Ele achou que uma atitude mesquinha, logo de cara, faria com que os administradores checassem novamente sua ficha: eles poderiam descobrir que cometeram um engano o fazendo subir ao invés de descer. 

     O céu era um tédio. As pessoas gastavam a maior parte do tempo se reunindo em grupos de discussões pra debater coisas relacionadas à vida que deixaram pra trás. Se teorizar a existência já não é tão divertido quando estamos vivos, imagine o quanto isso pode ser insuportavelmente chato quando a vida nem nos diz mais respeito. O que mais revoltou seu Alberto era a empolgação e a forma como estranhos eram efusivos. Não respeitavam coisas básicas, como sua privacidade e a falta de empatia entre ele e todos os que tinha conhecido até então. Como ninguém precisava dormir, a convivência forçada era inevitável. Fiscais do governo (ou coisa assim) iam até a casinha de seu Alberto convidá-lo para as reuniões. Ele poderia não ir, mas se não fosse, não teria mais nada pra fazer além de se martirizar.

    Não havia jogos de azar, televisão, carne ou piadas depreciativas. Nada que incitasse a competição, a vaidade, o egoísmo ou qualquer coisa que lembrasse a natureza humana da vida terrena. Havia, porém, música clássica, aulas de yoga, passeios de bicicleta, hidroginástica e deliciosas refeições vegetarianas à base de soja. As pessoas eram condescendentes, educadas, simpáticas, prestativas, altruístas e pairava no ar uma nuvem de hipocrisia ignorada. No céu, a utopia comunista era real e aquilo, na prática, era bem mais inacreditável que nas idealizações. Seu Alberto percebeu logo que o paraíso era responsável por algum tipo de lobotomia que deixava humanos parecidos a terapeutas motivacionais.

      Depois de dois meses, não havia quase resquícios do desencarnado que estava pensando em tentar se suicidar. Seu Alberto resolveu ceder à pressão das pessoas e começou a participar de fato das atividades. Ele percebeu que a misantropia iria tornar a eternidade insuportável. Uma coisa é suportar a vida, outra bem diferente é aguentar algo que não acaba nunca. Apesar da saudade que sentia da esposa e dos poucos amigos, seu Alberto foi se integrando aos grupos por osmose. Virou um velho sorridente, agradável, bem humorado e muito cínico. Fez uns colegas, começou a ter aulas de violoncelo, a caminhar no finalzinho das tardes e aprendeu a cozinhar bolo de milho com canela. A vida após a morte não era muito diferente da vida antes dela. Seu Alberto não estava muito feliz, mas estava distraído o suficiente pra se esquecer disso. O céu não era um lugar tão ruim, afinal, bastava fazer um esforço pra acreditar nele.

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