sábado, 29 de outubro de 2011

Bobagem.

Refaço os passos como se assim pudesse mudar o sentido dos meus caminhos. Mas não há redenção no passado. De qualquer forma, oprimido pelo peso do meu peito, não tenho escolha se não contemplar os espaços vagos que o tempo cultivou em mim. Becos sem saída, labirintos sem esquinas, passagens sem destino.

Sou o protagonista do filme que assisto e a solidão na plateia me dá uma paz estranha. Eu, ali, me basto como se no mundo não houvesse mais nada pra necessitar ou preocupar. Revivendo memórias, me esqueço do presente e abro de mão de existir em linha reta. Vivo ao contrário.

Ouço o eco das coisas velhas reverberando no espaço vazio. As pinturas estão desbotadas, o ar é úmido, eu toco em teias densas, o silêncio é cortante, a ampulheta gira igual a hélice de um monomotor inútil e só o que há a fazer é cair, cair, cair... cair até não poder mais. E quando o chão inevitavelmente chegar, trará a lembrança de que nada permanece suspenso pra sempre. Nem o tempo, nem as memórias.

Tudo se muda, tudo se esvai.

sábado, 22 de outubro de 2011

O Paraíso São Os Outros.

      Seu Alberto morreu aos 93 anos. Como todo velho que passou dos 90 que se preze, ele já se organizava para o fim. Dizia à sua família (e a ele mesmo) que estava pronto e não tinha medo. Assumir que se está preparado pra morrer é uma mentira válida e reconfortante, daquelas que a gente finge que acredita por pura conveniência. Além do mais, contrariar alguém que está pra morrer é sacanagem, ainda mais quando isso pode tornar a coisa toda da morte ainda mais assustadora. Seu Alberto não estava pronto mesmo, morrer era a parte fácil.

   Ele acordou numa sala oval inundada por uma luz branca muito enjoativa. Três anciões vestidos com túnicas azuis vieram lhe saudar com um sorriso grande. Deram as boas-vindas e contaram que seus parentes o aguardavam ansiosos. Seu Alberto gelou. Ele havia saído de casa aos 16 anos justamente porque não gostava da família na qual tinha nascido. E lá estavam seus pais de braços abertos, descarados, buscando reconciliação. Abraçou-os por medo de causar má impressão. Ele achou que uma atitude mesquinha, logo de cara, faria com que os administradores checassem novamente sua ficha: eles poderiam descobrir que cometeram um engano o fazendo subir ao invés de descer. 

     O céu era um tédio. As pessoas gastavam a maior parte do tempo se reunindo em grupos de discussões pra debater coisas relacionadas à vida que deixaram pra trás. Se teorizar a existência já não é tão divertido quando estamos vivos, imagine o quanto isso pode ser insuportavelmente chato quando a vida nem nos diz mais respeito. O que mais revoltou seu Alberto era a empolgação e a forma como estranhos eram efusivos. Não respeitavam coisas básicas, como sua privacidade e a falta de empatia entre ele e todos os que tinha conhecido até então. Como ninguém precisava dormir, a convivência forçada era inevitável. Fiscais do governo (ou coisa assim) iam até a casinha de seu Alberto convidá-lo para as reuniões. Ele poderia não ir, mas se não fosse, não teria mais nada pra fazer além de se martirizar.

    Não havia jogos de azar, televisão, carne ou piadas depreciativas. Nada que incitasse a competição, a vaidade, o egoísmo ou qualquer coisa que lembrasse a natureza humana da vida terrena. Havia, porém, música clássica, aulas de yoga, passeios de bicicleta, hidroginástica e deliciosas refeições vegetarianas à base de soja. As pessoas eram condescendentes, educadas, simpáticas, prestativas, altruístas e pairava no ar uma nuvem de hipocrisia ignorada. No céu, a utopia comunista era real e aquilo, na prática, era bem mais inacreditável que nas idealizações. Seu Alberto percebeu logo que o paraíso era responsável por algum tipo de lobotomia que deixava humanos parecidos a terapeutas motivacionais.

      Depois de dois meses, não havia quase resquícios do desencarnado que estava pensando em tentar se suicidar. Seu Alberto resolveu ceder à pressão das pessoas e começou a participar de fato das atividades. Ele percebeu que a misantropia iria tornar a eternidade insuportável. Uma coisa é suportar a vida, outra bem diferente é aguentar algo que não acaba nunca. Apesar da saudade que sentia da esposa e dos poucos amigos, seu Alberto foi se integrando aos grupos por osmose. Virou um velho sorridente, agradável, bem humorado e muito cínico. Fez uns colegas, começou a ter aulas de violoncelo, a caminhar no finalzinho das tardes e aprendeu a cozinhar bolo de milho com canela. A vida após a morte não era muito diferente da vida antes dela. Seu Alberto não estava muito feliz, mas estava distraído o suficiente pra se esquecer disso. O céu não era um lugar tão ruim, afinal, bastava fazer um esforço pra acreditar nele.

sábado, 15 de outubro de 2011

Pessoas são só pessoas, disqui.

      Essa aparente resignação que tu tenta demonstrar é ridícula. Eu sei que tu te desespera depois das três da manhã, quando não consegue dormir e não sabe mais o que fazer ou pra quem ligar. Eu sei também que tu diz mais o que querem ouvir do que o que tu realmente gostaria de dizer. Consigo sentir de longe teu fedor de medo, teu pânico da solidão. Essa preocupação te parece ser tão concreta porque ela já é real, basta tu estender a mão pra acariciar teu monstro. Não há ninguém por perto, tu tá numa ilha mandando desesperadamente sinais de fumaça pra ninguém. As pessoas nem sabem fingir que se importam direito. É cada um lutando contra si, por si. Esperar reconhecimento e afeição de pessoas irrelevantes é o mesmo que se igualar a essas pessoas. Tu é diferente, porra, só falo essas coisas porque eu não posso te deixar te perder assim.

      Para de esperar dos outros o que tu não pode dar a ti. Ninguém pode te salvar de ti, fora tu mesma. Segura as pontas, levanta a droga da cabeça e aprende a ter orgulho do que tu é. A vida é escrota, difícil, cansativa, só às vezes é recompensadora, não é preciso ser gênio pra descobrir essa merda: ao invés de lamentações, tu deveria te esforçar mais pra virar parte da minoria que consegue esquecer isso. O segredo é fazer justamente o contrário do que tu tá fazendo agora: tu precisa quase te bastar, precisa gostar do teu silêncio, precisa não ligar pra quem não importa, precisa aprender a passear por dentro de ti, não esperar que os outros te convidem pra sair! Tu tem o poder de saciar tuas vontades independente da vontade dos outros. E se a tua vontade for alguém que não te quer, substitui o alvo, o alvo pouco importa, é só um pretexto.

      Querer coisas alcançáveis não é tão difícil, basta tu parar com essa mania estúpida de tratar pessoas como se elas fossem mais do que apenas pessoas. Ninguém, além de quem sempre esteve próximo, é importante de verdade. E tu, até onde sei, foi desde o início a pessoa que esteve mais perto de ti. Não entendo porque tu te lamenta sofrendo pela falta de gente que tu inventa ao invés de te conformar com as pessoas que tu já tem, as únicas que tu precisa realmente ter. Querer coisas que não estão à disposição é só uma forma cômoda de desviar o foco do problema pra uma causa que não pode ser combatida. É muito mais fácil culpar algo inexistente e renegar o real motivo da maioria dos teus problemas: tu mesma. Acorda, Alice.

sábado, 8 de outubro de 2011

Insensatez.

      A consciência concreta da inevitabilidade do fim torna todo o caminho mais extraordinário. Algumas pessoas acham que sabem que tudo-é-passageiro. No fundo, elas carregam uma esperança recatada que as faz acreditar, sem querer, que o final está longe demais pra ser alcançado. A tendência de tudo que começa é, invariavelmente, acabar. É importante ter noção da gravidade que é apostar alto em algo que, por natureza, não é feito pra durar. Nossos instintos não nos preparam pra autotraição a que eles nos guiam. Não pensar nessas questões, subentendidas pra alguns, é uma forma conveniente de desacredita-las.

      Por isso, não te espanta quando acabar: é assim mesmo. Eu sou chato pra caralho, tento não deixar isso tão visível, só consigo esconder por um tempo. É irreversível, vamos nos tornar desinteressantes, repetitivos, óbvios. E nos olharemos sem esperar surpresas, entediados e resignados, adiando o inevitável, protelando dores. Eu vou sentir pena de nós dois e ficarei magoado por dois. Tu vai guardar, bem escondida, uma ponta de raiva por mim e eu vou ficar achando que não é raiva suficiente. Nossa paixão/amor/seja-lá-o-que-for vai virar chiclete mastigado que perdeu o sabor e isso jamais será engraçado como era pra ser.

      Por outro lado, claro que há sempre a possibilidade de firmarmos um acordo tácito com cláusulas contratuais implícitas, válidas pra ambos, que nos proíbam de ficar conjecturando essas merdas sem ser julgados. Se tu concordar, nós fingimos cinicamente que somos ingênuos e que, sei lá, vai-ser-diferente-dessa-vez-porque-somos-únicos-e-tal. Nós inventamos verdades convincentes o bastante pra adiar por tempo indeterminado a hora em que elas se tornarão mentiras. Eu me esforço pra não repetir erros que não canso de cometer e tu me mostra como eu tô errado em relação a eles. Vamos ser convencionais, bregas, piegas, dramáticos, cristãos. Maturar juntos, ter uma penca de filhos, repartir problemas, envelhecer de mãos dadas, se querer sem desejo, ser como nossos avós e não acabar nunca, pra sempre.

sábado, 1 de outubro de 2011

Vitória.

      Antônio olha para os pezinhos da filha iluminados pelo luar que entra tímido por uma fresta na janela. Vitória dorme docemente em seu bercinho rosa sonhando com cores, formas disformes e o peito de sua mãe. Seu pai, prestando atenção na pulsação de seu peito, é tomado por um medo imenso que mal lhe permite ordenar os pensamentos. O bebê respira tranquilo, mas Antônio não consegue deixar de pensar até que ponto isso é bom.

     Quando sua esposa anunciou que estava grávida, Antônio não se conteve de felicidade e saiu berrando pelo apartamento. Agora, dez meses depois, ele admira o resultado daquela transa mais ou menos enquanto tenta afastar ideias incômodas que lhe tomam de súbito. Pensa em Vitória como um amontoado de células inexpressivas, um filhote sem propósito, um animalzinho sem utilidade. Um bichinho de estimação que sobreviverá de seu trabalho, que custará muito caro e será incapaz de reconhecer e valorizar seu esforço.

     Sua filha terá o que comer, frequentará excelentes escolas, fará aulas de piano, estudará em uma boa universidade e terá um emprego garantido em sua empresa. Mas Antônio acha que Vitória não merece nada disso. Ele pensa em outros bebês, frágeis e vulneráveis como o seu, morrendo de fome, crianças que já nascem condenadas a não ter um futuro. Pessoas que nascem como erros que ninguém quer assumir, mais propensas a se tornarem bandidos, estupradores, assassinos e filhos da puta desse gênero. Gente que é culpada por existir.

     Antônio vê sua filha, mais velha, como uma menina mimada, prepotente e egoísta. Sente pavor de não conseguir fazê-la entender a gravidade que é estar vivo. Acha que não conseguirá ensiná-la a compreender como as coisas são, o que faz elas serem escrotas do jeito que são. Tem medo de ser um pai ausente, de não ter tempo de dar lições importantes à filha; de ser renegado quando ela for adolescente; de vê-la se tornar uma pessoa fútil e interesseira; de ter o desprazer de pagar uma festa de casamento milionária para ela se tornar esposa de um idiota qualquer que pedirá sua casa de praia emprestada e a trairá com putas de luxo.

    Vitória acorda de repente, como se fosse desperta pelos pensamentos sombrios do pai. Não chora, não esperneia, não caga e nem mija, só fica quietinha enquanto varre o ambiente com seus grandes olhos. Antônio olha o corpinho da filha, os bracinhos se mexendo lentos, e sente que poderia desmembra-la usando apenas uma mão. Vitória o olha tão fixamente que se Antônio não fosse tão cético, poderia jurar que a menina o estava recriminando. Ele diz: “Sabe, Vitória, seria engraçado se eu te jogasse no lixo e uma família brega te adotasse e também te chamasse de Vitória”. Ela emite um pequeno gemido, faz um esboço de riso, um leve levantar de lábios, talvez tenha sido só um soluço. Antônio ri maravilhado com a possibilidade de a filha estar condenada a ser uma boa pessoa.