sábado, 30 de julho de 2011

Luiz e Jorge.

      É ilógico e não tem coerência nenhuma se viciar numa mulher não existe, mas seria mais difícil se fosse um homem, e isso lhe consolava. Luiz, mesmo antes de conhecer Clara, já havia se apaixonado pelo seu nome. Clara era apenas um nome quando Mari, amiga de ambos, começou a falar dela. Encheu a cabeça oca de Luiz com fantasias lindas: lhe falou como eles pareciam ter sido feitos um pra o outro, disse que tinham até as mesmas personalidades e manias, os mesmos gostos estranhos, as mesmas teorias... Mari endeusou Clara. Luiz, como quem não quer nada (querendo muita coisa), descobriu o perfil dela no Facebook através da sua amiga. Ele ficou embasbacado: além de linda, Clara parecia realmente ter muitas coisas em comum com ele. Pra uma pessoa como Luiz, se algo que pode vir a ser “bom” parece “ótimo”, é o suficiente pra colocar fé naquilo e ignorar coisas óbvias do tipo: estar sendo extremamente preconceituoso e se iludindo demais, sem nem ao menos ter motivos razoáveis pra isso. Estar carente, vulnerável, suscetível, beirando o desespero, só justifica metade da babaquice.

       Mari, que também já havia falado de Luiz pra Clara, combinou o encontro dos dois numa festinha em sua casa. Isso foi uns oito dias antes dele acessar o perfil dela, coisa que ficou fazendo durante toda aquela semana. Conversou muito com Mari sobre Clara. Ficou sabendo que ela estava meio pra baixo por ter acabado o namoro recentemente e que gostava de literatura clássica. Saber que ela estava emocionalmente abalada e ter um gancho pra uma conversa que ela não poderia ter com qualquer um: Luiz achou que era tudo que precisava saber. Só o que Luiz não sabia era o quão idiota estava sendo. Passou aqueles dias sem conseguir dormir direito, babando na tela do computador pelas fotos de Clara e pesquisando no Google sobre os livros que ela havia lido. Ele tentava encontrar detalhes subliminares da personalidade de Clara através do que ela havia deixado público. Mas, claro, as interpretações dele eram escrotas, superficiais e só serviam pra ver o que queria enxergar. Luiz criou tantas expectativas em cima de Clara que se ela correspondesse à metade delas, já seria uma coincidência muito bizarra.

      Depois que foram apresentados, misteriosamente, cada um foi pra um canto. Luiz, deslocado, admirando Clara como se estivesse vendo a materialização de deus. Ela com um copo de vodka na mão, visivelmente entediada, sentada no sofá enquanto as outras pessoas se esbarram dançando na sala. Mari chamou atenção de Luiz e o impressionou a fazer alguma coisa. Ele, suando frio e tirando forças de suas entranhas, foi até Clara e pediu um cigarro. Ela lhe deu e ficou olhando pra cara dele esperando alguma coisa. Mas Luiz pegou rápido o Marlboro e foi até à varanda com as pernas tremendo. Depois de meia hora, cansada de esperar e já muitíssimo desinteressada, Clara cedeu ao Jorge e acabou ficando com ele. Mari não acreditou quando viu os dois se pegando bem ao lado de Luiz. Ele lá, olhando as estrelas, com um cigarro apagado nas mãos e lágrimas nos olhos. Não demorou muito e Clara foi embora com Jorge sem nem ao menos se despedir. Mari chamou Luiz de canto e perguntou o que havia acontecido e ele, sem saber direito o que havia acontecido, respondeu: “Ela é demais pra mim”. Passou uma semana se lamentando por alguém que só existia na imaginação dele. Não queria falar com a Mari sobre Clara e decidiu esquecê-la. Mas ele não aguentou muitos dias e acessou mais uma vez seu perfil no Facebook: viu que ela estava namorando o Jorge. Uma coincidência bizarra que alguns podem achar inaceitável, mas não pode, de forma alguma, ser considerada impossível. A vida é cheia de acasos caóticos e ligeiramente sacanas. Bom, Luiz sentiu dor. Uma dor inventada, desnecessária, infantil, burra, injustificável, descabida, imbecil, boboca, covarde e imatura, mas que doía do mesmo jeito.

sábado, 23 de julho de 2011

Reencontros e desencontros.

   

     Paloma caminhava feito um zumbi empurrando o carrinho pelos corredores. Eram três da manhã. Ela havia acordado uma hora, não conseguiu mais dormir e começou a sentir uma claustrofobia inexplicável. Estava estressada demais, havia tido um dia difícil no escritório e o que acabara de começar prometia ser pior. Colocou um vestido velho e decidiu ir ao supermercado 24h da esquina pra comprar cigarros e duas pizzas de calabresa. Ia andando sonolenta, passando pelas sessões desertas, arrastando suas havaianas enquanto sentia crescendo uma tranquilidade reconfortante. A luz branca uniforme refletia nas embalagens e Paloma estava tão à vontade que começou a usar o carrinho como um patinete. Imaginou que o céu poderia ser um supermercado com prateleiras infinitas cheias de produtos grátis. O que eu acho improvável porque deus deve ser comunista e, mesmo de graça, comer loucamente pode ser considerado consumismo e apego a coisas materiais. Mas, enfim, Paloma viu o Lucas, ficou sem reação, e bateu nos congelados.

      Lucas havia sacaneado Paloma há uns quatro anos. Namoraram por seis meses e antes de completarem sete, Lucas disse “não dá mais” e sumiu da vida dela. Paloma cobrou explicações, justificativas, mas ele insistia em ficar em silêncio repetindo variações de “não tem como a gente continuar”, mesmo sem nenhum problema aparente. Daí a raiva imensa que ela sentiu virou uma mistura de nojo e mágoa e manter distância dele se tornou a coisa mais lógica a se fazer. Depois de semanas tentando entender o que aconteceu, Paloma achou mais prático acreditar que Lucas não gostava muito dela e pronto. Fazia sentido, já que ele não teve consideração nem pra dizer o porquê de estar indo embora e não se importou com o seu sofrimento. Se bem que filha-da-putagem, às vezes, não é uma questão de caráter ou desafeto e sim de fazer uma escolha errada sem querer.

      Paloma, depois da batida, se abaixou e começou a engatinhar numa tentativa ridícula de se esconder de Lucas. Ela ficou repetindo “puta merda” mentalmente à medida que arrastava os joelhos no chão. Ele já havia a visto, sabia que estava tentando evita-lo, mas caminhou até ela do mesmo jeito. Lucas não estava raciocinando direito e também ficou assustado ao vê-la, avançou por instinto. Evidente que a situação era constrangedora pra ambos, se ele tivesse pensado por mais alguns segundos iria perceber o quanto era errado tentar falar com ela. Depois de quatro anos, as duas pessoas já tiveram tempo suficiente pra se desacostumarem uma da outra. Se não mantiveram contato durante todo esse tempo, não havia motivos pra se falarem numa circunstância daquelas. Paloma tinha certeza que Lucas teria bom senso suficiente pra desviar o caminho e fingir que não a viu, mas isso foi até ela esbarrar em suas pernas.

_ Oi.

_ Tava procurando meu brinco, caiu em algum lugar...

_ Eu sei que tu tava tentando te esconder.

_ Tá. Vou indo.

_ Espera aí.

_ Espera o quê, Lucas? A gente não tem nada pra conversar.

_ É claro que a gente tem.

_ Não, a gente tinha, agora não importa mais. Olha, tenho que acordar cedo, eu vou indo.

_ Eu gostava tanto de ti que fiquei com medo.

_ Ah, Lucas, faça-me um favor, né.

_ Não, de verdade, eu tava tão apaixonado, que fiquei assustado, tava me sentindo muito dependente, era intenso demais pra eu suportar e...

_ Lucas?

_ Que foi?

_ Vá tomar no cu, tá?

      Paloma deixou o Lucas com cara de idiota e foi embora. Seu coração estava acelerado e ela carregava um sorriso estranho que misturava nervosismo e satisfação. Preferiu ignorar o passado, por mágoa, orgulho e um leve desinteresse. Não há como saber o que aconteceria se ela tivesse feito uma escolha diferente. As decisões que tomamos têm resultados imprevisíveis, e é mais confortável acreditar que fizemos aquelas que nos poupou de mais transtornos. Como é impossível prever o que aconteceria se fossemos pelo caminho A e não pelo B, não faz sentido ficar remoendo consequências que nunca existirão. Então, Paloma foi dormir relembrando o prazer enorme que teve ao mandar Lucas tomar no cu. Mas se sentindo uma grandessíssima filha-da-puta por isso.

sábado, 16 de julho de 2011

O Neto.

 

      Er... Oi... Olha, eu não sei o que dizer... Sério, eu tô um pouco nervoso haha... Desculpa, pessoal... Tá... Nossa, eu tô realmente nervoso... Calma... Er... Hum... Eu sei, eu sei hehe... Bom... Certo... Hunf... Ok... É lógico que eu sei que não preciso ficar nervoso. Pombas não precisam cagar em cima de carros e nem por isso meu carro amanhece um dia sem tá cagado por elas! Olha, eu tô ficando estressado, então eu vou ser bem sincero com vocês, eu não gosto desse tipo de rodinhas de apresentação, acho um constrangimento totalmente desnecessário, não sou bom em falar em público, nunca fui, pelo amor de deus, a gente vai se ver uma vez por semana, sentar a bunda na cadeira e tentar colocar o inglês na nossa cabeça! Quem em sã consciência vai gastar o único tempo que tem pra aprender a droga do inglês fazendo novos amigos!? Eu tô muito satisfeito com meus amigos, pra quê fazer amigos novos!? Pra comer na fes-ti-nha-de-con-fra-ter-ni-za-ção!? Eu não vou ter tempo pra aprender a confiar em vocês, eu não vou me expor pra vocês, eu não quero a comida de vocês, me desculpem, vocês não precisam saber quem eu sou, pra se fazer colegas basta saber o nome do indivíduo e pronto, por que todos nós não falamos só os nossos nomes e pronto!? Mas nãããão! Se eu disser pra vocês “eu sou o Neto” todos vão ficar me olhando, esperando eu dizer mais, eu complementar com o que eu faço, o que eu gosto, o que eu penso... “quem é você?” porra, isso lá é pergunta que se faça!? Como vocês querem que eu responda isso!? Têm livros chatos pra caramba a respeito de como é impossível fazer essa merda, tem teses de filosofia sobre isso, escreveram páginas e páginas divagando sobre essa porra, alguns dizem até que nós nunca vamos saber quem somos, como eu posso dizer pra vocês uma coisa que nem eu sei!? O pior é que parece eu sou o único que não vê sentido nisso! Todo mundo que falou até agora pareceu ansioso pra discursar, abriu a boca pra falar de si cheio de orgulho, como se fossem pessoas interessantíssimas que todos adorariam conhecer, né!? “Ah, eu sou pisciana, muito sonhadora, sabe como é” sabe como é o quê, mulher!? A pessoa diz quem é pelo signo! Pelo signo, minha gente! Não me olha assim, não, vocês pediram pra eu falar, eu vou falar, aí o outro diz “ah, eu sou o Geraldo, sou engenheiro, casado, tenho três filhos” e eu com isso, Geraldo!? O quê é que eu tenho a ver com a tua família, Geraldo!? Aí vem a dona Fátima e diz “é como diz o filósofo: ‘definir é limitar-se’” quem diz isso é o Orkut, dona Fátima, pelo amor de deus, não tem como a senhora ser menos brega, dona Fátima!? Desculpa, dona Fátima, eu não queria ofender a senhora, mas a senhora é brega pra caralho, dona Fátima! A senhora faz isso por sadismo, não é professora, a senhora quer ver o circo pegar fogo, quer pegar os alunos nervosos, os alunos que gostam de ficar quietos, assistir a aula e ir embora, quer me ver me borrando de medo, é assim que a senhora se diverte e depois fica olhando a gente gaguejar com um sorrisinho simpático, olha, professora não gosto do seu sorrisinho simpático, não, pra mim ele é tão falso quanto o “quem sou eu” da Rosana porque eu sei muito bem que Rosana não é médica coisíssima nenhuma, Rosana é prostituta profissional e atua sob o codinome de Sandrinha Sapeca, cobra setecentos paus pelo programa, fala pra eles como tu me extorquiu ontem à noite, Sapequinha, vamos nos conhecer agora, vamos colocar as cartas na mesa, ninguém esconde nada, quem mentir paga prenda. Vocês começam, eu vou bem ali no banheiro e já volto.

 

Qualquer dia eu me junto com meus amigos pra gravar isso e colocar no Youtube.

sábado, 9 de julho de 2011

Babaca, mas nem tanto.

 

      Ela estava sentada ao balcão tomando a segunda garrafa de cerveja. Eu a vi dando fora em três caras com jeito de só-tô-aqui-pra-beber-e-foda-se-você. Acho muito difícil crer que alguém que vai à boate, num sábado à noite e desacompanhada está atrás só de bebida e não quer ser incomodada por ninguém. Ainda que não fosse consciente, pra mim era mais do que provável que aquela menina estava atrás de pau. As probabilidades só não eram maiores porque considerei a possibilidade de ela ser lésbica. Mesmo no escuro, percebi que era muito bonita. Bom, isso é um pouco de exagero porque a pouca luz só me deixava ver o contorno do seu corpo. Mas achei que seria sacanagem da natureza presentear alguém com formas como aquela e contrabalancear isso com um rosto mal acabado, então não me preocupei muito. Além do mais, já havia duas horas que eu estava procurando uma mulher disponível, o Lucas e o Fábio já tinham se arranjado e eu mais um pouco desistia de conseguir diversão. Enfim, o rosto ocupava uma das últimas posições na minha escala de prioridades.

      Depois de muito observar e constatar que ela estava realmente sozinha, fui lá me vender. Ela já tinha dispensado outros caras sem muita conversa e, confesso, eu fui meio desacreditado. Resolvi fazer uma abordagem agressiva porque qualquer coisa clichê que eu falasse não iria funcionar. Afinal, ela era do tipo que vai-beber-sozinha-em-boate-e-não-tá-nem-aí. É preciso certo grau de autoconfiança e desprezo pelos outros pra fazer algo assim, sem se importar com os julgamentos. Com certeza ela já estava cansada de receber cantadas babacas e ouvir papinhos cínicos, então era necessário fazer algo mais trabalhoso. Eu decidi fugir dos lugares comuns pra tentar surpreendê-la e fazê-la perceber que eu sou “diferente”. Risos. Como se qualquer homem solteiro e heterossexual que se dispõe a ir numa boate não tivesse a fim da mesma coisa... Somos todos iguais, o que nos difere é a forma que usamos pra conseguir o que queremos. O que eu queria fazer era arriscado: ela poderia ser burra demais pra me compreender ou inteligente o suficiente pra não cair na minha lábia.

      Meu plano era chegar, me fingir de menino sem jeito e dizer coisas como: “Olha, eu já vi tu dispensando três caras, não te preocupa que tu não vai precisar fazer o mesmo comigo... Vim aqui porque não é todo dia que a gente vê uma mulher foda o suficiente pra sair de casa e beber sozinha, mas se tu tá aqui deve ter um motivo... Enfim, essa festa tá um tédio, meus amigos foram embora e, se tu não te importar, ficar aqui conversando seria mais legal do que dançar Lady Gaga”. Não é muito bom, porém: é o que tinha pra ontem. Eu me coloquei uma expressão de desinteressado e fui à luta. Sentado ao seu lado no balcão, dei uma olhada de canto de olho, cruzei os braços, respirei fundo, me virei... mas, eis que quando me preparava pra articular as palavras, arregalei os olhos, fechei a boca e quase não me contive quando vi a minha salvadora. Estampada na blusa da menina em preto-branco, reluzindo na luz negra e com um sorriso tosco à la Mona Lisa: Santa Clarice Lispector. Quase não pude segurar meu riso de satisfação. Com a maior calma do mundo, olhando contemplativo para uma garrafa do outro lado do balcão, disse alto suficiente pra ela me ouvir:

_ É estranho sentir saudades de algo o qual mal vivi ou evitava viver. (Havia visto no Twitter)

_ Oi? (Ela virou e vi que tinha o rosto quase tão bonito quanto o corpo)

_ Nada... Vi a Clarice na tua blusa e me lembrei dessa frase. É muito bonita. (Mentira, eu acho de uma forçação de barra triste)

_ Nossa, tu é fã dela? (Imediatamente me imaginei com meus amigos, tomando vinho e fazendo emocionadas leituras dos livros de Clarice)

_ Claro! Ela é uma das melhores escritoras que existem. Já li “A Hora da Estrela” e “A Paixão Segundo G.H”, e tu? (Eu li a capa)

_ Já li “As Pequenas Descobertas do Mundo” e “A Hora da Estrela”. (Pensei: “Ótimo, não leu nem metade do que a mulher escreveu, posso falar qualquer merda”)

_ Ela é demais, né? Consegue escrever de um jeito tão poético... me vejo muito nos textos dela. (De novo, quase não seguro o riso depois de dizer isso)

_ Eu também! Ela fala de solidão de um jeito único, muito profundo, parece que tá falando exatamente o que tu sente. (O horóscopo também)

_ Eu sei! Não é incrível o nível de compreensão que ela tinha? A habilidade dela de usar a linguagem pra explicar o inexplicável? De chegar ao inalcançável e ver o invisível? (Eu não consegui não rir nessa hora, mas dei a entender que eram risinhos de nossa-tô-muito-empolgado-olha-como-tô-feliz)

      Mônica fazia aquele tipo de menina que só gosta de bandas semi-inexistentes que ninguém nunca ouviu falar por aqui. Era parte do clã que acha inaceitável alguém assistir Triplo X ao invés de um Laranja Mecânica da vida. Gente estranha que se veste igual e se acha mais inteligente que os outros porque assiste séries ao invés de novela e sonha em morar na Europa, mesmo nunca tendo ido à Europa. Além de Clarice, ela também idolatrava “divas do cinema” como Audrey Hepburn, Greta Garbo e Brigitte Bardot. Mônica disse que suas atividades favoritas eram: “Ler, escrever, fotografar, ouvir música, admirar a chuva, comer só o recheio dos biscoitos e ficar molhando os pés até enrugar antes de tomar banho”. Um minuto de silêncio... Quando saquei a dela, foi muito fácil falar exatamente o que ela queria ouvir. A menina era tão previsível quanto as piadas do Zorra Total. Falei meia dúzia de bosta sobre uns filmes do Kubrick; inventei umas curiosidades sobre os Beatles; disse que meu segredo ridículo era o sonho que eu tinha de viver um grande amor em Paris, falei dos cafés de Montmartre, da grama do Champ de Mars e dos cinemas da Champs-Élysées: foi mais do que o suficiente pra Mônica ficar encantada por mim. Nesse meio tempo ela já havia bebido mais duas garrafinhas e não foi difícil leva-la ao motel. Que ninguém me chame de aproveitador barato: no sexo casual há pelo menos duas pessoas diretamente envolvidas sentido prazer, eu nunca fui egoísta em relação a isso e até paguei a conta que, aliás, não foi nada barata. Felizmente ela era espetacular e valeu o investimento. Deu seu celular e me fez prometer que ligaria. Óbvio que não vou ligar, né, comer ela duas vezes seria muita sacanagem.

sábado, 2 de julho de 2011

Sinal Fechado.

 

      Parado ao meu lado no semáforo, eu vi um homem borrifar a água usada para limpar para-brisas na cara de uma menina, ela tentava limpar o vidro do seu carro. Depois de fazer gestos negativos com a mão e diante da insistência dela, ele simplesmente jogou água em sua cara. A garota, mais surpresa que eu, ficou parada olhando através da película por uns cinco segundos. Fiquei observando espantando aquela expressão neutra, apática. Por um momento a vi irada, levantando seu pequeno esfregão e martelando com uma força sobrehumana o vidro até despedaça-lo. Mas, com vergonha de mim, admirei a criança enxugando o rosto com as mãos, baixando a cabeça e se dirigindo para o carro de trás.

      Eu me senti tão escroto que foi como se eu mesmo tivesse humilhado a menina. Senti vergonha de estar dentro de um carro com borrifador de água, à disposição dos serviços dela. Surgiu uma repulsa tão grande de mim que quis sumir para não ter mais a minha companhia. Tive vontade de largar o carro no meio da rua, ir até o veículo do homem e perguntar se ele não tinha nojo de ser ele mesmo. Quis enfiar o esfregão no cu do cara, quebrar seus membros, atirar uma pedra em cada vidro do seu carro, botar fogo em sua casa. Mas aí o sinal abriu, respirei fundo e seguimos, como se nada tivesse acontecido, em direção opostas.

      Depois ainda fiquei imaginando se a menina estudava, se tinha casa, se tinha o que comer, se tomava banho, se usava drogas, se tinha pais, uma boneca, roupas, alguma alegria. Fiquei me perguntando se o homem tinha filhos, se foi maltratado quando era criança, se acreditava em Deus, se era rico, se estava puto com alguma coisa, se pagava os impostos em dia, se conseguia dormir tranquilo à noite. No entanto, logo depois me consolava repetindo mentalmente que eu estava sendo dramático e que coisas assim acontecem todos os dias. Que a responsabilidade daquilo era dos idiotas que colocaram a menina no mundo, e eu não tenho nada a ver com isso. Que não faz sentido me martirizar por algo que não depende de mim pra acontecer ou acabar. E me tranquilizei tão facilmente quanto me emputeci.

      Um grande intelectual chamado Milton Santos disse que a humanidade nunca existiu e que só agora estamos fazendo ensaios do que será a humanidade. Eu concordo, ao menos em parte. A história humana é marcada por guerras, violência, brutalidade, disputas de poder, opressão. Se analisarmos dessa forma, é evidente que evoluímos ao longo dos séculos. A selvageria tornou-se inadmissível, a discriminação (ainda que teoricamente) é socialmente condenada, os índices de educação aumentam consideravelmente, as liberdades individuais passam a ser gradativamente mais respeitadas e um otimismo sadio é criado em torno da crescente popularização das novas tecnologias.

      O problema é que a natureza humana é a mesma desde o início e não há previsão para que isso mude. Somos egocêntricos, vaidosos, egoístas. Há tempos vivemos no “salve-se quem puder”. A urbanização foi, é e continuará sendo só um pretexto pra deixar as coisas mais confortáveis pra quem tem o poder de aproveitá-las à custa dos que não podem. E ainda reclamamos das consequências dessa violência velada, dessa indiferença que julgamos inculpável. As cidades abrigam paranoicos, estressados, explorados, marginais, iludidos, babacas e todos disputam diariamente os mesmos espaços. As pessoas, as amizades, se tornaram apenas entretenimento barato. Compaixão e solidariedade saíram de moda. Nós nos perdemos no meio dessa letargia sem nem perceber. Não foi só por não ter feito nada em relação ao episódio da menina que eu me senti um merda: eu me senti realmente mal porque sei que há outros milhões como ela, e eu também não vou fazer nada por nenhum deles. Assim como os outros, estou ocupado demais preocupado comigo mesmo, tentando me salvar.