domingo, 26 de junho de 2011

Um velho.

 

      Sou um velho. Não me defino como velho para evocar uma série de estereótipos e preconceitos que me limitem e me tornem previsível e, portanto, mais compreensível. Alguns dizem que devemos respeitar os mais velhos e eu, mesmo antes de ser velho, sempre achei babaquice respeitar qualquer um que não nos respeita. Portanto, não me afirmo velho para provocar qualquer empatia (ou mesmo antipatia) daqueles que nos generalizam como se fossemos simples feito crianças. Se me digo velho assim, logo de cara, não é para justificar minhas ideias, muito menos dar credibilidade à elas. Falo que sou um velho apenas porque é uma das poucas certezas que tenho a meu respeito.

      Passei boa parte dos meus oitenta anos tentando me encontrar. Não que eu não saiba exatamente quem eu sou. O problema é que nunca encontrei alguém que aturasse o convívio comigo por muito tempo, logo, nunca tive com quem me reafirmar. Por passar a maior parte do tempo interagindo apenas comigo, acabo um pouco confuso às vezes. Eu sei que pareço ridiculamente dramático, do alto das minhas oito décadas, falando de crises existências. Mas, acreditem, depois de tanto tempo sem saber meu lugar no mundo, eu simplesmente aceitei minha condição como sendo uma consequência inevitável da decisão que tomei: permanecer vivo. Ser deslocado não foi uma escolha, eu não tinha outra opção.

      Deixei minha esposa depois de dois anos de casado, e isso ocorreu há 52 anos. Ela levou nossa filha e nós nunca fomos muito próximos: o fato de eu considerar seu nascimento um erro deve explicar basicamente o porquê. Aliás, meu casamento foi um terrível equívoco. Me juntei porque estava terrivelmente apaixonado por uma mulher magnífica, linda, completamente alienadora. Era tão forte e novo meu sentimento que fui ao médico com medo de ter desenvolvido algum problema cardíaco. O problema foi que minha mulher mudou completamente depois do parto e se mostrou uma pessoa com a visão de mundo tão limitada quanto a de um peixinho dourado. Não a reconhecia mais e meu sentimento foi embora tão subitamente quanto acontecem as evacuações depois de um longo período de prisão de ventre.

      Gastei praticamente todas as minhas horas trabalhando feito um escravo pra uma empresa de merda. Não gostava nenhum um pouco de trabalhar ali, coisa repetitiva, gente idiota, mas o dinheiro era bom e eu fiz um ótimo pé de meia. Já aposentado, pude viajar pelo mundo como sempre quis. Lembro da minha infância quando lia nos livros de geografia sobre terras longínquas, sonhava em visitar países distantes acreditando que bastava mudar de espaço pra que eu mudasse completamente minha vida. Nos primeiros meses foi maravilhoso, mas depois de algumas viagens, perdi a paciência pra aturar jet lags, turistas empolgados, quartos de hotéis, passeios óbvios e estresses desnecessários. Foi então que percebi que a humanidade fez o mundo ficar tão uniforme e sem graça quanto ela mesma e que realizar sonhos é uma babaquice. Agora vivo aqui, isolado e doente, mas não reclamo. Se eu fosse minha filha, me internaria do mesmo jeito. Os remedinhos ajudam a passar o tempo e, esquecendo de mim, não preciso me preocupar com quem eu sou.

domingo, 19 de junho de 2011

Julieta.

 

      Julieta, ainda moça, resolveu tomar uma drástica decisão que serviu como um marco em sua vida. Passou a dividir as pessoas que já conhecia, assim como as que ela conheceu posteriormente, em dois grandes grupos: as interessantes e o resto. Apesar de consciente do seu radicalismo, ela nunca foi de se importar com muitos seres humanos. Logo, ser reducionista e fazer julgamentos simplórios, ainda que sabidamente idiota, tornava sua vida social mais dinâmica e divertida. Julieta avaliava as pessoas a partir de detalhes extremamente bestas: de frases impensadas numa conversa informal ao modelo de calçado que a pessoa em questão estava usando. Sua pesquisa antropológica, ao invés de levar em conta critérios respeitáveis ou pelo menos sensatos, era baseada num achismo tão bobo que beirava a infantilidade. Ela era uma atriz incrível e poucos sabiam o quanto era prepotente e arrogante. Julieta se fingia tão bem de qualquer outra coisa que não fosse ela mesma que era querida por quase todos. Difícil não gostar de alguém que se adequa perfeitamente à personalidade da pessoa com que está interagindo, como se isso fosse simples feito dar descarga.

      Se um desconhecido fizesse algo e Julieta desaprovasse, ele era posto imediatamente no grande grupo do “resto” e só poderia sair de lá se tivesse o desprazer de conviver ela. Julieta era falsa e ardilosa com quem não tinha amizade. Aproveitava-se da companhia dos outros para medir o quão divertidamente estúpidos eles conseguiam ser. Claro que estupidez era uma concepção distorcida na mente doentia de Julieta. Ela considerava estúpido, por exemplo, pessoas que sorriem demais, homens que usam chave do carro pendurada na cintura e mulheres que aceitam que os acompanhantes sempre paguem toda a conta. Seus amigos de fato cabiam em uma mão de quatro dedos e eram ouvintes dos piores de tipos de absurdos preconceituosos. Certa vez, em uma festa, Julieta disse à Nádia que havia adorado sua saia com estampa de onça, perguntando, inclusive onde ela havia comprado. Depois, rindo incontrolavelmente, comentou com Carlos como ela parecia uma “traveca pintada”.

      Sei destas coisas porque Julieta era minha melhor amiga. Respeitava seu mau-caratismo porque não conseguia levar aquilo a sério. Ela era tão intolerante e dissimulada que parecia uma super vilã de histórias em quadrinho. O lado sombrio era tão caricato que eu tentava não leva-lo em consideração. Para mim, Julieta só tinha um senso de humor excessivamente negro e nenhuma vergonha na cara. Fora isso, era uma pessoa compreensiva (acreditem), extremamente inteligente, que poderia conversar sobre quase qualquer assunto, além de ser naturalmente muito divertida e absurdamente engraçada. Passávamos um bom tempo juntos, erámos confidentes e cúmplices, falávamos sobre tudo e Julieta parecia realmente gostar mim. Ingenuamente, acreditei que conhecer as qualidades que ela simulava e ter sua companhia eram motivos suficientes para eu me considerar seu amigo. Depois fui descobrir que os “pequenos” desvios de caráter de Julieta eram, na verdade, mostras de uma mente psicopata e megalomaníaca.

      Na carta que Julieta deixou, ela confessou que todos, incluindo os amigos, a deixavam extremamente entediada. Contou que não via graça em ninguém e que fingir interesse estava lhe causando um esforço que não achava mais necessário. Segundo Julieta, ela estava “deveras cansada de procurar um único ser humano que provoque algo que não seja asco”. Falou que nós não conseguíamos despertar qualquer sentimento nela e a distração que proporcionávamos se tornou “repetitiva demais”. Julieta, sem pudor, expressava seu profundo desafeto por aqueles com os quais conviveu durante toda sua vida. Como ela pediu, todos nós, amigos próximos e família, lemos a carta e ficamos bestificados com tamanha desconsideração e frieza. Julieta se achava boa demais para nós. Para ela, todos erámos incorretos, sem sal, hipócritas e fracos. Sua insensibilidade era tamanha que a permitiu dissimular sentimentos ternos como se realmente fossem sinceros. Inconsequentemente, Julieta provocou depressão nos pais, no avô e nas duas irmãs. Ela foi embora porque considerava qualquer lugar uma ideia melhor que dividir este conosco.

domingo, 12 de junho de 2011

Bartolomeu.

bartolomeu 

      O leão de pelúcia de João foi um presente de natal. Sua avó disse que ele era mágico e que ganhava vida quando ninguém estava olhando. Ela lhe contou que o leão não falava nada porque era muito tímido. João, que nunca ligou muito para bonecos, gostou imediatamente do bicho: primeiro porque ele era azul, sua cor favorita, e depois porque o menino também era muito introvertido, logo, achou que iria se dar bem com o novo companheiro. Batizou seu presente de Bartolomeu. Seu pai lhe contou uma vez que Bartolomeu era o nome de um homem que morreu faz tempo e foi o primeiro a andar de navio pelo fim da África. João viu na TV que os leões moram na África e achou Bartolomeu um nome engraçado para se por alguém, então seu Bartolomeu seria o único vivo em todo o mundo. 

     Passavam o dia juntos em aventuras épicas que envolviam bruxas, bandidos, ETs, baratas gigantes, fantasmas e tudo que metia medo em João. Bartolomeu dava coragem ao menino e lhe protegia quando as coisas ficavam perigosas demais. João tinha medo de dormir no escuro antes de conhecer o leão, mas passou a dormir tranquilo, pois sabia que o amigo ficava vigiando o quarto durante toda a noite. Às vezes o garoto ficava acordado até tarde, fingindo que dormia, para ver se Bartolomeu brincava sozinho ou ia ao banheiro. João preferia a companhia do amigo de pelúcia a de outras crianças da sua idade. Quando sua mãe lhe chamou atenção para isso, ele disse a ela que gostava mais do Bartolomeu porque ele não fazia confusão e era um bom guardador de segredos.

      O leão perdeu o olho esquerdo enquanto explorava as densas matas que ficam no fundo do jardim de inverno. Bartolomeu, guiado descuidadamente por João, seguiu o rastro até um formigueiro secreto quando foi atacado por uma flor espinhosa assassina. O menino correu choramingando e pediu à mãe para que transplantasse o olho do amigo de volta, mas ele sempre voltava a se desprender. Conformado com a tragédia, o garoto explicou a Bartolomeu que aquele era o seu destino e que era melhor aceita-lo e se acostumar com a ideia. João o consolou falando que havia gente com dois olhos sem que nenhum deles prestasse pra nada. Portanto, ele disse a Bartolomeu que não deveria ficar tão triste, já que ainda poderia ver as coisas com o olho que lhe restava.

      Um dia, João foi à praia com os pais e levou Bartolomeu junto para lhe mostrar onde fica a África. Durante a viagem, enquanto João segurava o bichinho pela janela, ele escorregou da mão do menino. Não era a primeira vez que fazia aquilo: na ida e na volta da escola, costumava segurar o leão do lado de fora do carro fingindo que ele era o Superman. João gritou e seu pai, assustado, freou forte quase provocando um acidente. Estacionaram no acostamento e acharam Bartolomeu espatifado no meio da pista, sem a cabeça e com as entranhas saindo do corpo. João chorou desesperado porque sentiu uma dor forte no peito. Passou algumas semanas dormindo com os pais, sem comer direito e mal falando nas aulas. As saudades faziam o menino sonhar com o leão correndo e, algumas vezes, até conversavam sobre a vida. João rezava para Deus cuidar do amigo e aproveitava para pedir um anjo da guarda. Ele havia voltado a sentir medo de dormir no escuro. 

       Já crescido, João mal se lembra da infância. Ele superou a perda de Bartolomeu alguns meses depois quando ganhou um videogame novo. Revive os fatos através das histórias dos pais, mas é como se fosse ouvisse uma vida que nunca lhe pertenceu. João aprendeu a lidar com as crianças que faziam confusão e parou de brincar sozinho. Esqueceu-se como era tímido e inseguro e dos segredos que morreram junto com seu melhor amigo. Recorda apenas que tinha um leão encardido de juba azul que caiu do carro. O leão morreu cedo, antes que João pudesse lhe matar. Ficou para trás com a inocência e a fé do garoto e foi substituído por brinquedos mais caros e pessoas mais independentes. O espírito de Bartolomeu vive, agora sim em silêncio, guardado dentro de João. Em sua memória, só a felicidade do menino para quem ele tentou ensinar como não ter medo do mundo mesmo sem poder enxergar as coisas direito.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Se dando com respeito.

      Otávio estava suando frio desde às sete, quando desligou o celular e imediatamente se arrependeu de tê-lo usado. Quem lhe deu o telefone de Adriana foi Mauro. Ele assegurou que a moça era muito discreta, educada e que só atendia clientes classe A. Otávio há cinco meses estava divorciado. Seu casamento durou dez anos, terminou porque ele e a esposa simplesmente pararam de se suportar. Não tiveram filhos. Sem muita criatividade e com pouquíssimo tempo, pagar pensão para a ex pareceu lhe pareceu uma boa forma de gastar as excessivas sobras de seu dinheiro. Otávio sentia falta da mulher e não se relacionou com ninguém desde o dia em que saiu de casa. Mauro disse que ele precisava transar para aliviar o estresse do trabalho. Sabendo da inabilidade do amigo para conquistas e dos riscos de se envolver com aproveitadoras, indicou-lhe Adriana. “Ela é muito gostosa, tu não vai te arrepender!”, disse a Otávio.

      Chegou a ligar novamente para desmarcar, mas desistiu antes de Adriana atender porque percebeu que estava muito intrigado. Nunca havia conhecido uma garota de programa até então. De repente, foi tomado por uma curiosidade quase infantil: “como será que ela é?”, “sobre que assuntos ela deve conversar?”, “será que ela é vulgar ou faz a linha fina?”, “será que ela fica triste depois do programa?”. Ele tinha quase certeza que não conseguiria transar com ela. A ideia de pagar para consumir sexualmente outro ser humano não lhe agradava. Julgou que, mesmo transpondo as barreiras morais, a disputa entre sua consciência e a vontade lhe renderia uma boa brochada. De qualquer forma, pagaria o combinado para passar o tempo conversando com Adriana. Pensou até em pedir um strip, se sua timidez permitisse, mas duvidava ter estômago para passar disso. Pensava nas possibilidades quando Adriana tocou a campainha pontualmente às 22h.

      Adriana tinha cabelos loiros, muito lisos e era extremamente branca. Mauro não exagerou quando disse que a moça era gostosa, mas não tinha mencionado o quanto seu rosto era lindo. Otávio ficou olhando aquela menina que, pela idade, poderia ser sua filha e não sabia o que fazer. Adriana vestia uma calça jeans justa, uma blusa vermelha decotada e estava de salto. Ficou parada à entrada da porta esperando pelo convite de entrar, olhando desconfiada para Otávio. Pensou que havia errado de apartamento. Perguntou a ele se estava no lugar certo e, mesmo depois de receber a confirmação, continuou confusa porque Otávio não esboçava nenhuma reação. Ele ficou lá, parado, olhando com certo espanto para moça e se censurando pelo que fez. Não conseguia dizer nada, nem mesmo pedir para que ela se retirasse. Julgou que não era para tanto, mas sentia-se insuportavelmente constrangido. Adriana pediu para entrar e Otávio, tremendo, apenas virou o corpo para lhe dar passagem.

_ Tu és o Otávio mesmo?

_ Sou sim...

_ Hum... É a primeira vez com uma garota de programa, né?

_ Hã? Como tu sabe?

_ Haha. Experiência...

_ Olha, foi um erro ter te chamado aqui. Vou te pagar e tu pode ir, tá?

_ Como tu preferir... A gente pode só conversar, se tu quiser.

_ Não sei se é uma boa ideia, sabe...

_ Tudo bem, tu quem sabe.

_ É que eu não me sinto à vontade contigo.

_ Eu entendo... Tem esposa? Te sente culpado?

_ Tu é boa nisso mesmo, hein... Não tenho mais esposa, mas me sinto culpado do mesmo jeito.

_ Ah, não eu já me acostumei, sabe. Dei outro significado pro meu corpo, algo assim.

_ Como assim?

_ Perdi o pudor, entende? Meu corpo é como se fosse uma roupa que empresto pra os homens vestirem, às vezes. Haha.

_ Sei…

_ Não, tu não sabe.

_ É que… É tua intimidade... Não acredito que não te incomoda ser usada como se fosse um objeto.

_ Eu não. Tem gente que vende sapato, celular, carro, computador... Eu vendo meus buracos. Claro que o início foi difícil, mas me acostumei e agora até gosto. Dá uma puta grana. Haha.

_ Não sente nojo?

_ Nojo eu sinto de gente hipócrita e falsa moralista. Eu gosto mesmo de grana e de trepar. Acabou-se. Suor, pau e porra são besteiras pra mim. Tem alguma coisa pra beber aqui?

_ Claro...

      Conversaram e riram até 1h. Depois de beberem, ele finalmente se soltou e conseguiu se sentir à vontade com ela. Teve vontade de transar, sim, mas deduziu que o papo seria mais prazeroso que sexo. Ela tinha um jeito estranho de ver as coisas e Otávio se esforçou sinceramente para compreendê-la. Otávio foi pondo de lado um a um seus preconceitos na medida em que Adriana foi lhe surpreendendo. Ela lhe contou que gostava de trabalhar com sexo, mas que não era iludida: sabia que seu corpo perde o valor conforme passa o tempo e que já estava a cinco anos fazendo uma poupança para montar uma sex shop de luxo. A princípio ele pensou que toda autoconfiança de Adriana era apenas um disfarce que usava para esconder suas mágoas. Depois percebeu que ela era realmente bem resolvida porque, diferente de quem a julgava, não levava seu trabalho a sério. Adriana tinha aquela sabedoria que adquirem os que se fodem muito antes de aprender como encarar a vida.