sexta-feira, 27 de maio de 2011

Verdades.

 

      Não te condeno por tentar omitir aquilo. É difícil manter o equilíbrio com tantas obrigações nos consumindo diariamente. Logo, não estar tranquila ou especialmente bem aquele dia poderia ser considerado normal e é mais fácil dizer “sim” do que prolongar uma conversa que só levaria a queixas bestas. Reclamações que poderiam mesmo ser de alguém imaturo que não quer ter responsabilidades nenhuma. Afinal, quem está realmente tranquilo ou especialmente bem a maior parte do tempo? No entanto, eu sabia que tu estavas com um mal estar digno de nota aquele dia. Estavas área, olhando pra baixo com mais frequência que o normal, respirando fundo mais vezes que o necessário. Talvez tu quisesses chamar minha atenção, me induzir a tentar esclarecer as coisas. Foi por isso que demorei de propósito a perguntar se estavas tranquila. Um pouco de sadismo de minha parte apreciar o aumento da tua impaciência. Poderia apenas perguntar “o que tu tem?”. Mas com uma pergunta direta assim, as chances de tu mentires seriam menores, porque eu já detonaria desconfia. E eu gosto de te ver mentir.

      As pessoas às vezes mentem até quando querem dizer a verdade. Mas tu não. Tu te conheces o suficiente pra distinguir exatamente o que tem ou não dentro de ti. Eu sabia que não estavas bem. Sabia do mesmo jeito que sei que mordes os lábios quando estás indecisa, do mesmo modo que entendo que finges não ouvir uma pergunta pra ter tempo de pensar na resposta. Eu já te observei o bastante pra compreender o que significam teus detalhes. Teus detalhes são tão sutis e particulares. Te faço mentir só pra te ver desviar o olhar e diminuir o tom de voz. Gosto de apreciar essas bobagens: sinto uma ternura tão grande que, apesar de sabê-la, não conseguiria explica-la. Acho engraçada tua insegurança. É como se teu medo maior não fosse não conseguir me enganar, como se teu receio de verdade fosse eu não perceber que estás justamente tentando me enganar. Gosto de te fazer mentir porque, no fundo, sei tu ficas feliz não conseguindo. Como se fosse uma boa prova de amor te conhecer mais do que tu gostaria que qualquer um conhecesse. Então eu disse: “Olha, sei que tu não tá bem, me conta...”. Segurei o riso e fiz cara séria porque ao invés de provar, eu só estava brincando de te amar.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O niilista.

 

      Paulo trabalhava na supervisão de uma companhia de comércio eletrônico. Na hora do almoço, ia ao refeitório da empresa e comia sempre com os mesmos colegas. Eram sete empregados e eles se davam bem. Paulo, entretanto, era visto com desconfiança por todos porque sempre assumia uma postura indiferente e não participava dos debates e discussões do grupo. Quando a conversa assumia um tom demasiadamente sério e eles desandavam a falar dos problemas do mundo, Paulo respirava fundo e emudecia. Não importava qual era o tema em questão: ele se prontificava a ficar em silêncio, ouvindo paciente, mas visivelmente desinteressado. Seus colegas se incomodavam com o fato dele falar pouco, mas ninguém nunca comentou nada diretamente com ele e as queixas se resumiam a umas observações em tom de brincadeira. Uns achavam que ele era muito tímido para defender seus argumentos ou se pronunciar a respeito. Mesmo quando a conversa era leve, Paulo falava pouco. Porém, a maioria acreditava mesmo é que ele era lento demais para formar opiniões consistentes e não expressá-las era uma forma discreta de esconder sua burrice.

      Lucas era o colega mais próximo de Paulo. Às vezes, quando os outros começavam a tocar em assuntos delicados e polêmicos, Lucas começava uma conversa paralela com ele a respeito de mulheres, música, futebol ou qualquer coisa mais leve. Paulo gostava dele porque era um dos únicos que não demonstrava impaciência com seu desinteresse. Mas odiava quando Lucas se metia no meio das discussões porque sempre defendia suas opiniões tentando desqualificar a todo custo a dos outros. Lucas achava Paulo um cara legal, apesar de um tanto estranho, e sempre teve curiosidade de saber a razão daquela antipatia programada. Naquele dia Lúcio, André, Mauro e Ricardo foram almoçar no restaurante italiano recém-inaugurado ao lado da firma. Convidaram os demais, mas nenhum deles se animou muito com a ideia porque não queriam gastar dinheiro podendo comer “de graça”. Paulo ficou lá com Lucas, Odair havia faltado porque estava doente. Comeram a carne assada tendo uma conversa agradável sobre comida estrangeira. Quando acabaram, ainda faltavam quinze minutos para começarem seus turnos. Então Lucas resolveu aproveitar o tempo para tentar esclarecer as coisas.

_ Paulo, espero que tu não fique chateado com o que eu vou te perguntar agora.

_ Haha. Porra, Lucas, se tu achasse que eu não tenho motivo pra ficar chateado, nem tinha começado com essa história de “espero que tu não fique chateado”...

_ Pô, Paulo, deixa pra lá, então.

_ Brincadeira, cara. Pode falar.

_ Bom... Tu já percebeu que o pessoal te enche o saco porque tu resolve ficar mudo às vezes, né?

_ Haha. É, resolvo ficar mudo, sim. Acho que eles têm um pouco de razão até.

_ Se tu acha que eles tem razão, por que tu não participa da conversa?

_ Eu participo das conversas, sim! Não participo quando vocês resolvem discutir geopolítica, macroeconomia, políticas públicas, crise mundial, essas coisas.

_ Mas por quê?

_ Porque eu acho inútil e não me divirto.

_ Hã?

_ É inútil, cara. Vocês ficam se desgastando à toa falando o que vocês pensam sobre o mundo, defendendo argumentos, tentando compreender o que acontece na sociedade. Mas isso não serve pra nada.

_ Como assim, Paulo?

_ De que adianta a gente ficar discutindo se o país A vai ou não bombardear o país B por causa disso ou daquilo ou quais os interesses do prefeito por trás da construção do viaduto ou se a economia vai entrar em um novo colapso ou não?

_ Tu quer ficar alienado, é?

_ Haha! Não é porque eu não falo que eu não sei. Só acho desnecessário falar. O que essas coisas mudam na nossa vida? Diz aí, Lucas? O país sendo bombardeado ou não, o viaduto saindo ou não, saber se a economia vai quebrar ou não... A gente não pode fazer nada a respeito dessas coisas. Aliás, até pode, mas dá muito trabalho e a gente já tem um.

_ Bom...

_ Eu sinceramente não entendo porque vocês gostam tanto dessas discussões. A opinião da gente não vale quase nada e vocês as levam a sério demais.

_ Tu tá me ofendendo já, Paulo!

_ Desculpa, Lucas. Tá vendo o que acontece quando eu finalmente resolvo manifestar minha opinião?

_ A gente é feito de opiniões, cara! A gente é o que a gente acredita. Se tu não te manifestas então tu és um nada, eu acho...

_ Mas que conversa doida é essa? Lucas, eu te dei liberdade pra me fazer uma pergunta meio indiscreta... Posso te fazer uma também?

_ Claro, sem problemas.

_ O que te faz pensar que eu vou me dar ao trabalho de ficar expondo o que eu penso pra ser julgado por gente que nem me interessa de verdade sabendo que isso não adianta de nada?

_ O quê?

_ A gente é colega de trabalho, só isso. Nunca fui à casa de ninguém, não tenho intimidade com nenhum de vocês, na verdade eu mal conheço vocês, o máximo que a gente faz é ir pra barzinho vez ou outra. Tenho um pouco mais de contato contigo, sim, mas a gente não é próximo o bastante e tu não me conhece direito pra eu poder te considerar meu amigo.

_ Quer dizer que não somos amigos? É tu que não deixa a gente te conhecer, Paulo!

_ Não mesmo e talvez não deixe vocês me conhecerem porque eu não acho que vale a pena. Tirando tu e o André, o resto é meio chato, viu.

_ Não acredito nisso...

_ É a vida. Tá vendo o que acontece quando eu resolvo dizer o que penso a respeito dela?

_ Paulo, tu tem medo da vida... tem medo dos outros.

_ Tu não entendeu NADA! Posso te fazer outra pergunta, e dessa vez tu pode mesmo ficar ofendido...

_ Depois de tudo isso? Duvido...

_ Tu é fã de Augusto Cury ou algo do tipo?

      Paulo ficou esperando a resposta com um sorriso sacana, um riso que debochava de si mesmo. Coisa de gente que vê bem mais do que gostaria.

sábado, 14 de maio de 2011

Reencontros.

     

      Não se veem desde o tempo da universidade. Da última vez que conversaram suas vidas não estavam bem definidas. Ainda havia planos irrealizáveis, projetos absurdos, esperanças inocentes, ideais que foram postos de lado quando tomaram de vez as rédeas de seus destinos. Assumir a responsabilidade de se sustentar leva embora coisas que não se adequam à vida prática. Depois de oito anos, qualquer reencontro vira uma experiência imprevisível. As duas pessoas estão mudadas, sim, e ambas sabem disso. Antes tão próximos, agora veem um ao outro como um daqueles semiconhecidos inconvenientes que aparecem nas horas mais inoportunas e insistem em conversar. Uma de minhas teorias favoritas é a da “contradição prática dos semiconhecidos” cujo postulado diz: se tu conheces alguém que não conhece direito, o desinteresse, mútuo ou não, em aprofundar a relação não justifica a criação de qualquer proximidade, com exceção aos casos especiais que incluem: prestação de serviços; simpatia forçada para manter o equilíbrio dentro de determinado grupo social e interesses de ordem profissional onde a puxação-de-saco, velada ou não, é prática socialmente reconhecida.

      “Como vai tua vida?”, “o que tem feito?”, “onde estás trabalhando?”, “casou?”, “tu ainda fala com o Daniel?”, “não acredito que eles ainda tão juntos!”. Sorriem simpáticos enquanto fingem ignorar a inutilidade daquelas respostas e disfarçam o desinteresse em saber detalhes a respeito de quem não faz mais parte de suas vidas. Já passaram por todos os clichês e perguntas prontas. A superficialidade e a breguice da conversa beira o ridículo e não é do feitio de nenhum dos dois levar este tipo de coisa adiante. Ou não era. Chegaram ao ponto em que os silêncios se prologam mais do que deveriam. Ele sua frio e está muito desconfortável. Ela acha que já falaram besteira o suficiente e pensa em um jeito de levar a conversa ao fim. Então ele, atrapalhado pelo nervosismo, julga que aquilo não pode piorar e respirando fundo faz uma manobra arriscada que ao mesmo tempo põe um fim no diálogo imbecil e cria a possibilidade de um embaraço ainda maior:

_ Só falei contigo porque eu achei que não falar contigo seria mais estranho que falar contigo.

_ O quê?

_ Só falei contigo porque eu...

_ Eu entendi!

_ Ufa, que alívio.

_ Eu acho que tu tomaste a decisão errada, hein.

_ Sim, acho que qualquer coisa seria menos estranha que isso.

_ A gente já pode ir embora?

_ Agora que tá tudo esclarecido, acho que sim.

_ Tu continuas estranho. Bom saber.

_ Pois é, mas eu mantenho isso em segredo.

_ Hahah. E tu ainda confias em mim depois de tanto tempo?

_ Na verdade não.

_ Ué, mas e o teu segredo?

_ Eu tenho um teu também, achei justo.

_ Hum? E qual seria meu segredo?

_ Tu gostaria de dar pra o Antônio Fagundes.

_ HAHAHAH!

      E eles riem enquanto se lembram dos motivos de terem sido tão próximos. Ele continua divertido, com a mesma intolerância caricata que combina bem com o senso de humor bizarro dela. Ela ainda possui o mesmo refino de antes para criar explicações absurdas: esclareceu o afastamento deles como sendo obra da “preguiça vinda do acúmulo de obrigações e da falta de contato diário agravado por comodismo por ambos com o passar dos meses”. Aos poucos redescobrem o que deixaram pelo caminho, o que tiveram de abdicar, as opções que suas escolhas anularam. Sentem saudade de quando não tinham muito rumo e achavam que as coisas se ajeitariam sozinhas. Recordam seus desejos que há tempos foram ignorados e debocham da ingenuidade que perderam. Trocam contatos, despedem-se felizes e combinam de se rever logo.

      Em suas casas, repassam mentalmente as falas com sorrisos bobos pensando em como fazia falta ter conversas imprevisíveis como aquela. Ele queria falar mais sobre o caderno escondido em que ela havia criado teses a respeito do comportamento que assumia dependendo do ambiente que estava. Ela ainda sentia vontade de criticar, inutilmente, a vaidade e o egocentrismo que contaminavam a todos e o modo como ele tentava manter-se imune a isto. Em meio à nostalgia e comparando preocupados, percebem como eles próprios envelheceram progressivamente previsíveis e desinteressantes por pura falta de prática. Os anos lhes deram, além da estabilidade, uma preguiça aguda de agir de maneira oposta a mais conveniente. Ele era um estranho que se escondeu no armário e ela uma filósofa amadora que pendurou as chuteiras. Tornaram-se quase semiconhecidos de si mesmos.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Indiferença.

 

       Quando amanhecer, fará exatamente o que fez hoje. Irá se aborrecer e se sentirá satisfeita pelos mesmos motivos. Passará as horas, sem perceber, apenas esperando a noite. Acordará cansada, desejará dormir mais, contudo já é tarde e é preciso merecer dinheiro. Ela quer mais grana, mais amigos, mais tempo. Não sabe ao certo o que faria com isso, mas luta diariamente para conseguir. Os dias repetem, se sobrepõe, ontem parece terça da semana passada e foi igual à depois de amanhã. Às vezes ela planeja fugir, fugir para canto nenhum, apenas ir embora, largar de mão. Tem vergonha dos próprios pensamentos: sente-se ridícula. E, no entanto, por mais que queira ignorar, mesmo se esforçando para se distrair, ainda que sorria sinceramente, ela sabe que tem algo errado com a sua vida. Algo lhe falta, alguma coisa lhe sobra, há detalhes importantes fora do lugar. Não sabe exatamente o quê ou onde é, queria consertar-se. Pensa que, talvez, não seja algo tão específico e que o problema seja a existência da própria vida. Não pensa por muito tempo: vai logo procurar o que fazer pra deixar de besteira. E ela se diverte quando dá e, quando percebe, já não dá mais: seu tempo livre está preso. Chega a segunda, passa a semana, o mês, o ano. E a única coisa que acontece são dias virando noites e noites virando dias. Quando perguntam a ela “tudo bem?” ela responde simpática “tudo!”, como a naturalidade de quem poderia dizer “tanto faz!”. Ela sente-se automática. Ela é uma máquina rebelde que, de repente, aprendeu a imaginar como seria ser outra coisa e agora faz força para desaprender. Chega a sua casa exausta e dorme tranquila. Faz tempo que não lembra o que sonhou, acha melhor assim.

 

 

 

Deu vontade de escrever depois que eu vi isso:

Sei que não tem muito a ver uma coisa com a outra, mas o video é muito bonito e só por isso já valeria um post só dele. :)

domingo, 1 de maio de 2011

Dialética.

    

     Não há como ultrapassar a barreira da superficialidade até que um dos lados tenha ousadia suficiente para ceder e se expor. Para isso, no entanto, é necessário um estímulo, um sinal da outra parte capaz de originar na primeira este interesse sincero em aprofundar o diálogo. Diferente daquelas pessoas, eu não possuo paciência tão pouco me divirto com conversas banais. Levo a sério minhas opiniões e formá-las me dá certo trabalho mental. Porém, pasmado com os absurdos que ouvia, não tive vontade ou encontrei motivos para me expressar, argumentar e me esforçar para ser compreendido. De fato, aquela gente parecia excessivamente preocupada em revelar suas próprias ideias e pouco disposta a ouvir a dos outros. Sem muitas opções e contrariado, dei atenção a eles.

      Após uma hora observando a interação entre os indivíduos, constatei que os assuntos variavam de forma caótica. Depois de quinze minutos, por exemplo, o assunto do momento não dizia o menor respeito ao de dez minutos atrás e eu me perguntava como eles haviam chegado aquele ponto. A conversa era baseada, principalmente, na troca de impressões, partilha de experiências pessoais e relatos da vida de terceiros que nem se encontrava ali. Os temas mudavam sem muita lógica. Aparentemente, ninguém estava interessado em nada em específico e a preocupação era tão-somente falar não importando sobre o quê. Pelo que percebi, as pessoas se divertiam mais tagarelando e tentando chamar atenção do que simplesmente ouvindo. Se ficassem a repetir “me olhem, me olhem, me olhem...” e conseguissem o efeito desejado, elas ficariam.

      Fato curioso era a prontidão com que os membros da mesa se dispunham a opinar independente de qual fosse o assunto levantado. Todos tinham algo a dizer e diziam como se aquilo fosse verdadeiramente relevante. Se o tópico fosse energia nuclear, por exemplo, as pessoas se afobavam para expressar o que pensavam a respeito. Reproduziam discursos prontos e simplórios com uma veemência desnecessária. Buscavam sempre dar a última palavra antes de partir para o assunto seguinte. Pareciam não perceber o quanto aquele debate ingênuo era, no fundo, deveras inútil. Esforçavam-se para defender suas falas como se fossem chefes de Estado regendo o mundo e precisassem conduzir a opinião pública a fim de fazê-la apoiar as manobras importantes que estavam fazendo. Era ridículo e eu fiquei entediado.

      Uma hora e meia depois, eu já estava profundamente estressado e constrangido com aquela gritaria. O álcool havia inflado ainda mais o ego e a vaidade deles. Há vinte minutos estavam fazendo fotos e posando com suas bebidas enquanto forçavam sorrisos com uma naturalidade que me enojava. Nunca entendi porque as pessoas precisam estar necessariamente sorrindo em fotografias. Vai ver é a necessidade de provar aos outros o quanto se estava feliz naquele momento. Não me importo com o que pensam os outros e não acho que felicidade tenha a ver com sorrisos cheios de dentes. Além do mais, aquilo era só euforia forçada e eu não fui contagiado por aquele espírito. Enfatizo isso não para me justificar, mas para atenuar minha culpa. Quando finalmente tomaram coragem para reclamar por eu estar muito calado, aproveitaram o ensejo para protestar juntos contra minha seriedade nas fotos. Levantei-me e pedi encarecidamente para que todos tomassem em seus respectivos cus. Voltei para casa e dormi em paz.