domingo, 20 de março de 2011

A Barraqueira.

 

 

      Gabriela integrava o pequeno grupo, mas muito legal, dos maníaco-depressivos que encontram foças suficientes no orgulho para esconder sua patologia. Gabi trabalhava, sorria, comia, conversava, mentia, passeava e todas as demais coisas que as pessoas saudáveis fazem. Internamente, porém, ela vivia conflitos absurdos contra os quais lutava diariamente. A maioria deles tentava convencê-la, com sucesso, que sua vida estava muito errada e que tinha excelentes motivos para se sentir triste. Ela foi à festa porque achou que era o certo a se fazer. Não vou entrar em discussões metafilosóficas inúteis a respeito do que é correto ou errado. Qualquer um com um pingo de bom senso tem consciência de que está agindo de forma equivocada, o problema é que alguns acham justificativas para isso. Neste caso, as escolhas, independente de quais fossem, não afetariam negativamente ninguém, a não ser à Gabriela. Então, certo, aqui, é o que faria melhor a ela. Mas fez muito mal.

      Era uma daquelas festas de confraternização que empresas promovem para mostrar aos funcionários o quanto eles são muito importantes, apesar de substituíveis. Tânia insistiu muito para que Gabriela a fizesse companhia. Eram colegas. Gabi tinha muitos colegas: da época da escola, do tempo da faculdade, dos cursos de idioma, do condomínio, da academia... Achava quase todos muito desinteressantes e, considerando que eram umas quarenta pessoas, sete exceções é um número bastante razoável. As pessoas gostavam dela. Ela nunca conseguiu identificar o porquê, era apenas educada e ouvia pacientemente. Às vezes falava o que queriam escutar e ficava impressionada na maneira em que todos pareciam um tanto carentes de atenção. Como eu disse, Gabriela fazia essas coisas por educação. Se pudesse, falaria só quando quisesse, mas aí pensariam que ela era muda e o que Gabriela queria mesmo é ter audição seletiva.

      A banda tocava forró, algumas pessoas dançavam enquanto outras gritavam e umas senhoras pulavam. Grupinhos tagarelavam e, assim que colocou os pés no salão, Gabriela sentiu um impulso quase irreprimível de sair correndo e se atirar pela janela. Mas isso chocaria muita gente e aquelas pessoas já estavam se divertindo o suficiente. Então Gabriela fez o que lhe pareceu ser o mais sensato: ficar porre. Era isso ou começar uma crise de choro ridícula. Tratava-se de sua tática padrão para aguentar as conversas quando a convidavam para ir a barzinhos, sempre funcionava. Nunca fez barraco ou deu vexame. Falava mais, sim, dizia algumas besteiras idiotas, mas em meio à dos outros elas nem era notadas. Quando viram Gabriela na entrada, umas dez pessoas saíram correndo para cumprimenta-la. Uma hora depois, essas mesmas pessoas tentavam tirá-la de cima de uma mesa enquanto eram insultadas.

      Gabriela, obviamente, perdeu o controle. Acostumada apenas com cevada, depois de misturar uísque, vodka e cerveja, ela entrou no piloto automático. Foi de propósito. Gabriela queria ver o que faria se não soubesse o que estava fazendo. Sabia que era uma experiência perigosa, mas naquele momento, com a crise deixando seu estado emocional destroçado, ela concluiu que não valia a pena ter medo de perder o que ela não queria ter. Com o superego em off, Gabi subiu na mesa, pediu atenção e começou seu desabafo. Era o intervalo da banda e a música ambiente estava baixa, o salão inteiro ouvia a bêbada. Primeiro chamou dona Roberta que, apesar da fama, nunca tinha ouvido da boca de alguém que era uma velha mal comida. Depois disse que Reginaldo, seu chefe, era um babaca que não prestava atenção em nada além da bunda da secretária. Em seguida contou que a tal secretária empinava a bunda de propósito e que passava tempo demais na sala do homem. Depois berrou que Celso, filho de Reginaldo, só trabalhava na empresa porque o pai tinha pena por ele ser tão burro. Todos ficaram perplexos e chocados, então demoraram a tomar alguma reação. Por fim, tiraram Gabriela da mesa enquanto ela xingava e se debatia.

      Gabriela foi demitida naquela mesma noite. As pessoas foram embora lamentando o ocorrido com caras de espanto e, em suas respectivas casas, gargalhavam repassando as cenas. A festa foi o comentário dos corredores por semanas. Ninguém entendeu como uma moça tão equilibrada e gentil como Gabriela foi capaz de fazer uma barbaridade daquelas. Todos cochichavam que dona Roberta era uma cobra, que Reginaldo era tarado por secretárias, que as secretárias tinham jeito de garotas de programa e que Celso era um animal, mas isso não é coisa que se diga de cima de uma mesa no meio de uma festa. A existência de Gabriela passou a ser desconsiderada e ela era lembrada somente pelo escândalo. Nem mesmo Tânia a procurou. O assunto foi esquecido quando Nádia, irmã de Celso, foi contratada para substituir Gabriela. Não se sabe o que aconteceu com ela. Não que ninguém quisesse saber. Algumas pessoas vez ou outra perguntavam: “O que será que aconteceu com a Gabriela?”. Porém, era tão-só aquela curiosidade desimportante que sentimos quando nos indagamos despretensiosamente: “Será que vai chover?”. E quando chove nem lembramos que levamos isso em consideração: a vida segue de qualquer jeito.

Um comentário:

Gabriella Florenzano disse...

"Gabriela queria ver o que faria se não soubesse o que estava fazendo".

Ora, talvez esse seja um mal de Gabriel(l)a. :)