quarta-feira, 30 de março de 2011

Olhar o mar.

 

      Acho que descobri a razão de ser tão agradável olhar o mar. Simples: é prazeroso porque se trata só de um monte de água se mexendo. Ainda que tenhamos conhecimento dos bichos, florestas subaquáticas, navios mortos, fendas infinitas, mistérios... Não vemos nada. O mar é um grande pedaço de nada indo e vindo. Alheio às preocupações, aos afazeres, à pressa, às vontades, às dúvidas, à poesia... O mar não precisa de justificativas, provas ou razões para fazer isso ou aquilo. Ele simplesmente está lá, e ninguém lhe cobra coisa alguma por isso. O mar se basta porque ele cabe em si mesmo.

      A nós, tão cheios de si que mal nos suportamos sem alguém que nos ouça, nos resta contemplar a ingenuidade do mar. Respirar a maresia procurando no horizonte infinito a paz que não achamos dentro de nós. Como se a tranquilidade estivesse escondida num lugar que não podemos alcançar. E é aí, precisamente no momento que nos damos conta da nossa pequeneza, que nasce um bem estar minúsculo e sutil. E ele é tão acanhado e discreto que precisamos nos concentrar para senti-lo. Daí ele cresce. E nos pegamos sorrindo para as ondas sem esperar mais nada. Com sorte, talvez, ainda aparece uma garrafa velha com um alô de Deus.

 

:)

domingo, 20 de março de 2011

A Barraqueira.

 

 

      Gabriela integrava o pequeno grupo, mas muito legal, dos maníaco-depressivos que encontram foças suficientes no orgulho para esconder sua patologia. Gabi trabalhava, sorria, comia, conversava, mentia, passeava e todas as demais coisas que as pessoas saudáveis fazem. Internamente, porém, ela vivia conflitos absurdos contra os quais lutava diariamente. A maioria deles tentava convencê-la, com sucesso, que sua vida estava muito errada e que tinha excelentes motivos para se sentir triste. Ela foi à festa porque achou que era o certo a se fazer. Não vou entrar em discussões metafilosóficas inúteis a respeito do que é correto ou errado. Qualquer um com um pingo de bom senso tem consciência de que está agindo de forma equivocada, o problema é que alguns acham justificativas para isso. Neste caso, as escolhas, independente de quais fossem, não afetariam negativamente ninguém, a não ser à Gabriela. Então, certo, aqui, é o que faria melhor a ela. Mas fez muito mal.

      Era uma daquelas festas de confraternização que empresas promovem para mostrar aos funcionários o quanto eles são muito importantes, apesar de substituíveis. Tânia insistiu muito para que Gabriela a fizesse companhia. Eram colegas. Gabi tinha muitos colegas: da época da escola, do tempo da faculdade, dos cursos de idioma, do condomínio, da academia... Achava quase todos muito desinteressantes e, considerando que eram umas quarenta pessoas, sete exceções é um número bastante razoável. As pessoas gostavam dela. Ela nunca conseguiu identificar o porquê, era apenas educada e ouvia pacientemente. Às vezes falava o que queriam escutar e ficava impressionada na maneira em que todos pareciam um tanto carentes de atenção. Como eu disse, Gabriela fazia essas coisas por educação. Se pudesse, falaria só quando quisesse, mas aí pensariam que ela era muda e o que Gabriela queria mesmo é ter audição seletiva.

      A banda tocava forró, algumas pessoas dançavam enquanto outras gritavam e umas senhoras pulavam. Grupinhos tagarelavam e, assim que colocou os pés no salão, Gabriela sentiu um impulso quase irreprimível de sair correndo e se atirar pela janela. Mas isso chocaria muita gente e aquelas pessoas já estavam se divertindo o suficiente. Então Gabriela fez o que lhe pareceu ser o mais sensato: ficar porre. Era isso ou começar uma crise de choro ridícula. Tratava-se de sua tática padrão para aguentar as conversas quando a convidavam para ir a barzinhos, sempre funcionava. Nunca fez barraco ou deu vexame. Falava mais, sim, dizia algumas besteiras idiotas, mas em meio à dos outros elas nem era notadas. Quando viram Gabriela na entrada, umas dez pessoas saíram correndo para cumprimenta-la. Uma hora depois, essas mesmas pessoas tentavam tirá-la de cima de uma mesa enquanto eram insultadas.

      Gabriela, obviamente, perdeu o controle. Acostumada apenas com cevada, depois de misturar uísque, vodka e cerveja, ela entrou no piloto automático. Foi de propósito. Gabriela queria ver o que faria se não soubesse o que estava fazendo. Sabia que era uma experiência perigosa, mas naquele momento, com a crise deixando seu estado emocional destroçado, ela concluiu que não valia a pena ter medo de perder o que ela não queria ter. Com o superego em off, Gabi subiu na mesa, pediu atenção e começou seu desabafo. Era o intervalo da banda e a música ambiente estava baixa, o salão inteiro ouvia a bêbada. Primeiro chamou dona Roberta que, apesar da fama, nunca tinha ouvido da boca de alguém que era uma velha mal comida. Depois disse que Reginaldo, seu chefe, era um babaca que não prestava atenção em nada além da bunda da secretária. Em seguida contou que a tal secretária empinava a bunda de propósito e que passava tempo demais na sala do homem. Depois berrou que Celso, filho de Reginaldo, só trabalhava na empresa porque o pai tinha pena por ele ser tão burro. Todos ficaram perplexos e chocados, então demoraram a tomar alguma reação. Por fim, tiraram Gabriela da mesa enquanto ela xingava e se debatia.

      Gabriela foi demitida naquela mesma noite. As pessoas foram embora lamentando o ocorrido com caras de espanto e, em suas respectivas casas, gargalhavam repassando as cenas. A festa foi o comentário dos corredores por semanas. Ninguém entendeu como uma moça tão equilibrada e gentil como Gabriela foi capaz de fazer uma barbaridade daquelas. Todos cochichavam que dona Roberta era uma cobra, que Reginaldo era tarado por secretárias, que as secretárias tinham jeito de garotas de programa e que Celso era um animal, mas isso não é coisa que se diga de cima de uma mesa no meio de uma festa. A existência de Gabriela passou a ser desconsiderada e ela era lembrada somente pelo escândalo. Nem mesmo Tânia a procurou. O assunto foi esquecido quando Nádia, irmã de Celso, foi contratada para substituir Gabriela. Não se sabe o que aconteceu com ela. Não que ninguém quisesse saber. Algumas pessoas vez ou outra perguntavam: “O que será que aconteceu com a Gabriela?”. Porém, era tão-só aquela curiosidade desimportante que sentimos quando nos indagamos despretensiosamente: “Será que vai chover?”. E quando chove nem lembramos que levamos isso em consideração: a vida segue de qualquer jeito.

domingo, 13 de março de 2011

Evolução.

      Há milhões de anos atrás, alguns primatas passaram a se balançar sobre as árvores em bandos. Eles precisavam constituir famílias e uma organização política rudimentar para se protegerem porque, diferente de seus antecessores, viviam à luz do dia e isso os tornava alvo fácil de seus predadores. Essa necessidade de atenção constante e a hierarquia cada vez mais complexa exigiam daqueles bichinhos mais capacidade cognitiva do que eles dispunham. Elucubrações, preocupações, tentativas de comunicação, a ausência de vícios modernos além de outras coisas mais trabalhosas e mortalmente mais importantes do que as que fazemos hoje, fizeram os seus cérebros crescerem. Geração após geração, eles tornavam-se mais espertos. Até que numa bela tarde de sol um desses animais teve a brilhante ideia de descer de seu frondoso baobá. Para completar, ele chamou alguns de seus amigos para acompanha-lo em seu passeio. A experiência foi um sucesso e eles subiram de volta excitadíssimos.

      Os desbravadores fizeram muita propaganda para os outros e aconselharam todos a fazerem o mesmo emitindo rugidos que significavam coisas como: “Lá embaixo é muito divertido, aqui em cima tá muito caído, vamos todos descer, não sejam caretas”. Eles, aparentemente, adoraram o chão e cada vez mais e mais macacos desciam das árvores. Um grupo receoso se recusou a participar daquela aventura suicida, mas eles eram minoria. Na savana, eles tinham que lidar com leões, hienas, leopardos, tigres dentes de sabre e todo tipo de feras que adoravam comer aquelas coisinhas peludas e indefesas. Nossos amiguinhos precisavam se proteger melhor e isso lhes deixou ainda mais inteligentes e sociáveis. A vida em terra firme era difícil e, para se movimentar melhor, logo passaram a andar numa postura ereta. Eles ainda eram muito burros, mas, a partir, daí os cientistas dizem que eles já podem ser comparados a algumas pessoas e isso lhes dava o status de hominídeos.

      Esses homens primitivos sofreram algumas mutações ao longo de centenas de anos e isso foi os tornando um pouco mais parecidos com o Ricardo do que com um chimpanzé. Ricardo é um descendente direto desses animais espertos e de natureza muito sociável, assim como a grande maioria das pessoas que o cercam. Ricardo tem consciência da finitude de sua existência, possui o poder de resignificar as coisas e sabe usar a internet. Ele acredita que isso seja suficiente para se considerar um animal racional. Porém, ao longo de sua vida, uma série de acontecimentos frustrantes e experiências desagradáveis fez com que nosso herói acabasse por se tornar um humano que não se sentia como os outros da sua espécie. Ele era muito deslocado por uma razão que à primeira vista pode parecer besta, mas, se você pensar melhor a respeito, verá que ela chega a ser ridícula de tão simples: Ricardo não gostava muito de pessoas e não tinha paciência para relações superficiais. Contrariando sua natureza moldada a milhões de anos de evolução, indo de encontra com os valores que movem e sustentam a sociedade, resistindo às pressões sociais que o colocavam em situações muito embaraçosas, Ricardo não gostava de se juntar às outras pessoas.

      Ele não era autossuficiente, longe disso. Ricardo tinha alguns amigos com quem realizava atividades relacionadas ao lazer quando se sentia muito entediado e obrigava-se a sair de casa em um final de semana qualquer. Eles trocavam impressões a respeito da vida e riam bastante, essas companhias eram fundamentais para a manutenção de seu equilíbrio psicológico. Ricardo não sentia ódio ou aversão pelos outros indivíduos, o que ele tinha era uma indiferença sadia. Evita socializar não por repudio, mas porque não achava isso mais divertido que assistir a um bom filme. Suas tentativas de participar de ciclos sociais com muita gente resultaram em arrependimento amargo. Ele não entedia como as pessoas tinham aquela facilidade para falar espontaneamente com estranhos porque não os achava interessantes ou confiáveis a ponto de despertarem nele o mesmo estímulo.

      Certo dia os parceiros de Ricardo o convidaram para um jantar onde o apresentariam a seus outros amigos. Ele relutou, mas pensou bem e decidiu confiar nos seus conhecidos acreditando que só poderiam formar laços de amizades com pessoas igualmente atraentes e divertidas. Mas Ricardo falou apenas uma dúzia de palavras neste jantar que foi um fracasso. Ele não se interessava pelos assuntos discutidos, ficou com muito medo de opinar e ser incompreendido, não conseguia rir das piadas contadas, não se animava com as histórias e achou todos muito efusivos e vaidosos mais preocupados em falar do que em ouvir. Obviamente ele causou uma má impressão terrível nos desconhecidos.

      Em sua casa, Ricardo ficou repassando as cenas da noite e pensando nas razões que não o levam àquela felicidade aparente que todos demonstravam. Não havia gostado particularmente de uma moça que tagarelava a respeito de sua vida, nada relevante, e não deixava ninguém falar enquanto todos ouviam com um sorriso no rosto. Também não gostou nada de um rapaz que discursava como se dissesse as coisas mais importantes e originais do mundo e ironizava quem se atrevia a discordar dele. E não foi com a cara de uma senhora simpática que ria demasiadamente de tudo e estava sempre preocupada em não contrariar ninguém. Estava tentando decidir de quem havia gostado menos quando o telefone tocou.

_ Ah... Oi, Beto.

_ Porra, Ricardo... Que merda foi essa?

_ Falei que não era uma boa ideia, não era pra vocês terem insistido.

_ Tu nem te esforçou, cara.

_ Me esforçar pra quê, Beto? Eu vou bem sem aquelas pessoas...

_ Quantos anos tu tem, Ricardo?

_ O quê?

_ Quantos anos tu tem?

_ Er... trinta. Por quê?

_ Depois de trinta anos tu não aprendeu a fingir?

_ Fingir?

_ É, porra. Fingir interesse, fingir sorriso, fingir que tu te importa.

_ Er...

_ Porra, Ricardo. Tu sabe que eu gosto de ti de graça, cara. Mas tu é muito ingênuo.

_ Explica melhor isso aí.

_ Tu acha que aquelas pessoas tão muito preocupadas umas com as outras?

_ Eu sei lá, porra, explica melhor essa história pra mim.

      E o Roberto explicou para o Ricardo a importância de saber se portar socialmente e como aquilo poderia ser divertido, se ele não levasse as outras pessoas a sério. Naquela noite, Ricardo conversou horas a respeito de cinismo, falsidade e hipocrisia. Rio bastante das histórias que Roberto contou sobre conhecidos seus falando mal de outros conhecidos seus pelas costas e confirmou sua suposição de que ele não valia nenhum centavo. A teoria de Ricardo era que as pessoas tinham bastante necessidade das outras porque eram incompreendidas e se sentiam muito sozinhas. Mas Roberto riu disso e o convenceu de que as pessoas simplesmente usam umas as outras para se divertir ou para conseguir alguma outra coisa. Ele também lhe disse que ser cínico poderia ser muito útil para sua vida profissional e até que não era tão chato assim. Então Ricardo decidiu que entraria no jogo que evitava jogar por preguiça e comodismo.

      Ele está se saindo muito bem até agora. Tornou-se um cidadão simpático, solicito e até conseguiu alguma popularidade graças ao seu novo bom humor. Seu desempenho no trabalho também melhorou muito. Ricardo é visto agora como uma pessoa muito interessante. Ele realmente está se divertindo, como previu Roberto. Às vezes se sente culpado por estar sendo um pouco fingido, mas pensa na quantidade de novos amigos que também estão sendo falsos com ele e logo deixa esses pensamentos de lado. Ricardo descobriu que mesmo as pessoas mais desinteressantes podem ser divertidas, se você der uma chance a elas. Aprendeu a ter paciência com a diferença gritante que o separava dos outros e a ser mais compreensivo com quem antes o deixava irritado. Ele é inteligente o suficiente para ser falso da forma mais natural possível e todos o admiram por isso. Afinal, o aumento da massa cinzenta graças a desgastante vida em sociedade serviu para alguma coisa útil.

 

 

Quero dedicar este texto ao Rapha. Ele faz aniversário hoje e, sei lá, se não fosse por ele, acho que eu não escreveria metade das coisas legais que escrevo hoje porque, provavelmente, eu não me tornaria a pessoa que me tornei. ‘Brigado.

domingo, 6 de março de 2011

Deus existe, mas isso não é muito importante.

     

       Durante a maior parte da minha existência, desconfiei que houvesse algo muito estranho com ela. Não me refiro a mim: de modo geral, faz tempo que existir começou a soar um tanto quanto absurdo. São quase sete bilhões de seres humanos coexistindo e, para cada um de nós, a visão que temos da vida corresponde a uma realidade diferente de qualquer outra. Somos o centro de nossas vidas e, no entanto, elas não significam nada para todas as outras que permanecem independentes de nós. Essas constatações determinaram a forma cínica com que passei a encarar as coisas. Exemplo: a manchete do Jornal anunciava “Estudante mata vinte em escola pública” e, enquanto todos comentavam que a humanidade estava perdida, eu dizia rindo: “A humanidade está perdida desde que se deu conta de si”. Esse tipo de comportamento afasta as pessoas de mim, mas eu me divirto bastante.

      As religiões seduzem com dogmas que nos tranquilizam dando um sentindo maior a tudo isso. Desta forma, temos que nos preocupar apenas em ser subservientes e covardes. Francamente, entre um ser um desiludido e um tapado, eu prefiro a primeira opção. Como eu disse, o fato de eu achar a existência bizarra me permitiu complacência para ficar praticamente imune às surpresas desagradáveis que surgem pelo caminho. Ora, se não há sentido na vida, não poderia exigir dela acontecimentos lógicos. De tal forma que a visão daquele homem só fez com que eu ratificasse a minha teoria de que, se há algum sentido, ele está além da minha capacidade de captá-lo.

      Sou aposentado, divorciado e um pouquinho alcóolatra. Faz tempo que moro sozinho e nunca presenciei acontecimentos sobrenaturais de natureza alguma. Acredito que o fato de eu não crer em nada do gênero contribuía muito para isso. Para mim, a crença cega tornava suscetíveis às pessoas a terem essas experiências paranormais. Esquizofrenia também. Como eu não tinha fé alguma e apresentava um quadro psicológico estável, pensava ser impossível ver qualquer coisa que nem achava admissível existir. Bom, eram estas minhas suposições presunçosas até aquela noite. Não costumo receber visitas inoportunas. Meus filhos sempre ligam com antecedência assim como meus amigos e, enfim, eu não esperava ninguém vindo do outro plano naquele momento em especial.

      Ele era bem negro, muito velho e tinha os cabelos tão brancos quanto os dentes. Vestia uma túnica azul clarinha que emitia uma luz estranha e contrastava bastante com seu tom de pele. O infeliz brotou no ar sorrindo, feito criança que faz arte. Logicamente fiquei sem reação e meus batimentos cardíacos devem ter cessado por uns quatro ou cinco segundos. Por quatro ou cinco segundos meus pensamentos pararam e eu virei um bicho muito assustado. Meu sistema nervoso, com certeza, ficou sem saber que resposta dar aquele estímulo e decidiu entrar em curto. Estava em choque. O coração batia muito forte quando consegui perceber um pouco o que estava acontecendo. Dei-me conta do seguinte: primeiro que meu coração estava aceleradíssimo e depois que tinha um ancião aparecido de canto nenhum no meio da minha sala. Levei calmamente o copo de uísque à boca, pois achei que aquilo era a coisa mais sensata a se fazer. Então Deus disse:

_ Oi!

      Eu estava justamente pensando no quanto o achava um escroto quando o safado me apareceu. Eu apenas estava me divertindo, reclamando inocentemente e tendo ponderações idiotas. Eu não o chamei, nem mesmo acreditava na sua improvável existência. Minhas críticas se dirigiam à ideia que o senso comum faz de sua pessoa. Eu não consideraria uma ofensa pessoal grave ao ponto de justificar sua vinda. Porém, Ele veio mesmo assim. Não foi uma aparição como aquelas que escreveram naqueles livros. Ele simplesmente se materializou, indiscretamente, diante de mim sem prévio aviso. Não esperava um sinal luminoso abrindo o céu, nem uma sarça em chamas ou um mensageiro marcando hora. Mas, poxa, um vento estranho soprando as cortinas ou um calafrio na espinha prepararia meu espírito. Eu assistia a uma dessas tragédias naturais, que sempre rendem boas imagens para a Tv, e bebericava meu Green Label quando o Homem surgiu.

      Eu estava numa situação muito delicada. Naquele momento eu não sabia que a aparição era Deus. Para mim, era um espírito qualquer que não tinha coisa melhor para fazer. Minha pressão estava altíssima, quase desmaiei, mas tentei me manter o mais calmo que pude. Sou um homem frio e muito orgulhoso. Considerei inadmissível a ideia de ter um piripaque à custa de uma alma penada intrometida. Sim, vocês podem argumentar afirmando que todas as minhas crenças (ou descrenças) a respeito da vida após a morte e demais questões metafísicas caíram por terra e que qualquer um ficaria psicologicamente abaladíssimo. Porém, não sou qualquer um.

      A vinda daquele fantasma simpático de não sei onde para dentro da minha casa me incomodou demais e eu só queria que ele fosse embora. Eu não tive uma boa impressão: era uma assombração e, pior, era efusivo! Quando consegui sossegar o suficiente para que meus pensamentos fluíssem de forma organizada, decidi tomar uma atitude para me livrar dele. Talvez alguém mais sagaz no meu lugar esclarecesse os grandes mistérios da humanidade num bate-papo informal com aquele velhinho desencarnado. Eu estava sem paciência, relativamente bêbado, com sono, e não gostei de ter sido perturbado. Quem sabe tenham sido esses os motivos que inibiram minha curiosidade. Não me arrependo das perguntas que não fiz, é quase certo que suas respostas me fossem inúteis. Aliás, quase tudo aquilo foi inútil, incluindo aí minha tentativa de manda-lo embora.

_ O senhor, por favor, quer fazer o favor de se retirar do meu apartamento.

_ Como assim, Gilberto!? Isso lá é jeito de tratar uma visita?

_ Minhas visitas nunca são indesejadas justamente porque avisam antes de me visitarem.

_ Eu sou Deus, meu filho. Sou onisciente, onipresente e onipotente. Eu tô aqui mesmo sem você saber que eu tô.

_ Então o senhor é Deus?

_ O próprio.

_ Prove.

      E a minha sala foi inundada por lírios brancos que nasciam do ar e exalavam um perfume doce enjoativo.

_ Então o Senhor é mesmo Deus...

_ Sim, Gilberto.

_ Então, por favor, o Senhor pode sumir pra eu tentar fazer de conta que tenho alguma privacidade?

_ Gilberto, eu não tô acreditando!

_ Eu é que não tô acreditando! Aliás, eu nunca nem acreditei no Senhor! O que o Senhor quer que eu faça? Me ajoelhe e comece a lhe adorar!? E o livre arbítrio?

_ Não... Eu achei que seria bom pra você saber que eu existo e... Bom, pensei que faria bem a você.

_ Olha aqui, Deus, eu sei que o Senhor é uma pessoa muito popular e bem quista. Tem muitos fieis, não precisa de mais um.

_ Gilberto!

_ Desculpa duvidar do Senhor, mas era o mínimo que eu poderia fazer, dada a sua timidez crônica.

_ O quê!?

_ O Senhor poderia aparecer na televisão, ou num estádio de futebol, ou mesmo em uma praça movimentada. Mas não! Decidiu se mostrar pra um velho que não tem nenhuma credibilidade e mal sabe usar uma máquina digital! Como vou provar que o Senhor existe?

_ Não vim aqui pra você provar pra alguém que eu existo! Eu vim provar pra você que eu existo!

_ Pois já conseguiu. Infelizmente, isso não muda nada. O mundo continuará o mesmo e a imagem do Senhor ainda será cercada de polêmicas. Pode se retirar agora?

_ Gilberto...

_ Olha Deus, o Senhor pode aparecer outra hora se quiser conversar, mas eu não gostei da forma como o Senhor chegou como se fossemos amigos íntimos.

_ Eu realmente não acredito... Tudo bem, Gilberto, você me surpreendeu novamente. Suas ações terão um preço.

_ Isso foi uma ameaça? Ora Deus, não seja vaidoso. Agora dê licença que eu preciso continuar minha vida. E limpe minha sala, por favor.

      E Deus foi embora com os lírios. Sumiram do mesmo jeito que apareceram. Em seu lugar, eu também ficaria magoado como Ele aparentou estar. Fui muito mal educado e desnecessariamente duro. Está certo que entre nós existem diferenças, mas creio que Ele veio para tentar resolvê-las. A questão é que eu não queria resolver coisa alguma. Estava tudo bem do jeito que estava: Ele no seu canto e eu no meu. Não quero desmerecer uma figura tão grandiosa, mas é fato que minha vida prosseguia normalmente sem Ele da mesma forma que sua existência não dependia da minha crença.

      Reconheço que fui imprudente ao ser arrogante confrontando alguém que, não sei, poderia me desintegrar com um raio laser saído da mão. Deus provou sua fama de misericordioso. Creio que Ele lê isso agora e quero pedir perdão pelo meu comportamento descortês. Ele é uma boa entidade. Reitero aqui meu convite para termos uma discussão filosófica amigável cuja pauta será à sua escolha. Mas, olhe, o Senhor vê a tudo e a todos e ninguém o vê. Se ter bom senso para não crer cegamente em sua existência duvidosa me coloca em débito mortal com Senhor, não quero mais vê-lo nem depois de morto! Dê-me uma caixa de uísque e me mande para o inferno ou para qualquer lugar regido por alguém menos totalitário e mais democrático.