quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Danielas

     

       Daniela se encaixava perfeitamente num dos perfis de seres humanos que mais me despertam asco. Tinha nojo de Daniela porque, desde o primeiro dia, tive uma má impressão gigantesca a seu respeito. O pré-conceito era lógico o bastante para que eu procurasse me manter afastado. Permanecia no meu canto, sentindo minha aversão em paz. Nunca confiei em Daniela. Assim, entre a incerteza que eu tinha sobre o caráter da moça e a certeza de que ela não valia um centavo, eu preferia simplesmente me manter longe. Minha ojeriza tornava isso muito prático. Aliás, eu prefiro me manter distante de várias pessoas, pois considero raríssimas aquelas, de fato, relevantes. Contudo, Daniela era um caso especial.

      Se eu entendesse de sentimentos intensos, arriscaria afirmar que odiava Daniela. A raiva que sentia parecia alimentar-se de si mesma. Porém, havia motivos que a justificavam. Razões que, para alguns, podem soar idiotas, mas que para mim são extremamente válidas e eram mais do que suficientes: Daniela sorria em demasia para todos, ela falava demais com qualquer um, ela fazia montes de perguntas bobas como se estivesse mesmo interessada nas respostas e, sobretudo, ela não tinha vergonha de parecer exageradamente estúpida.

      Obviamente, todos no escritório gostavam de Daniela. Bom, quase todos. Algumas pessoas, como eu, sabem fingir muito bem esse tipo de coisa e, provavelmente, havia outras. Falsidade é um pré-requisito subentendido que se exige quando se é contratado para fazer um trabalho que não depende essencialmente de um indivíduo e demanda convívio social, como o meu. Contudo, creio que não desenvolvi esta habilidade tanto quanto deveria e não receber nenhuma promoção há tempos deve ser sinal disto.

      O maior problema, entretanto, não é fazer o mesmo trabalho há tempos, ou fato dele não depender só de mim ou mesmo o seu resultado, que raramente me agrada. Como disse, eu faço o serviço há anos, estou acostumado à frustração. Estou lá apenas porque tenho que pagar contas. O que me desagrada de verdade é ter que passar o dia naquele ninho de cobras. A vaidade parece mover as pessoas mais do que o próprio dinheiro. Eu sei porque falo pouquíssimo, ouço muito e não gosto de praticamente nada do que escuto.

      Daniela trabalhou um ano e pouco conosco. Jovem bonita, simpática, sorridente, sempre prestativa e bem humorada. O inacabável bom humor de Daniela me incomodava a ponto de eu frequentemente ter uns delírios homicidas com requintes de extrema crueldade que, acreditem, me assustavam muito. Porém, eram tantos sorrisos injustificados que eu tinha impressão de que ela havia feito alguma espécie de treinamento para exibir a arcada dentária, da forma mais natural possível, ainda que estivesse prestes a borrar as calças. Pensava nessas coisas e, rapidamente, a culpa por querer costurar a boca de Daniela com arame farpado depois de quebrar seus dentes com uma britadeira se esvaia.

      Evidentemente, não me atrevia a fazer comentários maldosos a respeito da menina com ninguém daquele lugar. Pensamentos assim são íntimos demais para serem compartilhados num ambiente tão promíscuo. Lá, confio totalmente apenas em mim e na velha máquina de fazer café que jamais me decepcionou. Além disso, eu não fazer quase nada fora minhas obrigações já é suficiente para me tacharam de antipático e boçal. Falar mal de Daniela só daria um motivo a mais para dizerem coisas piores de mim pelas costas: “Aquele invejoso tem raiva da Dani só porque ela é muito legal e tem uma carreira linda pela frente”, diriam.

      Uma bela manhã, eu cheguei atrasado ao escritório. Dormi tarde por conta de um filme que me prendeu enquanto zapeava os canais da televisão. Eu saí de casa apressado, não tive tempo de tomar café, me esqueci de escovar os dentes e arranhei a porta do carro. Aquilo parecia um prólogo anunciando as horas terríveis que viriam. Cheguei ao trabalho ofegante e notei imediatamente que Daniela, que nunca faltara ou se atrasara, não estava lá. Procurei logo por ela porque aquele dia provavelmente seria péssimo. Manter-me bem distante da garota era necessário para não colocar em risco sua integridade física e, o mais importante, minha liberdade.

      O que me deixou realmente intrigado foi aquele bando de gente que se virou para mim quando adentrei o prédio. Olhavam-me com uma mistura de espanto e desolação. Lembro-me que pensei: “Eu me atraso um dia e esses babacas querem me fuzilar por isso”. Perguntei se havia acontecido algo, e alguém, muito inteligente, me perguntou se eu não sabia o que havia acorrido, respondi pacientemente que não. Então, mostraram-me o jornal do dia estampando a manchete: “Jovem advogada e amante são presos após matarem o marido”. Logo abaixo, uma foto de Daniela algemada. Incrédulo, eu li a matéria o mais rápido que pude.

    Sem grandes detalhes. Aparentemente, Daniela havia matado o esposo por conta de herança. Um vizinho ouviu tiros, ligou para policia e ela foi presa com o amante antes de conseguirem fugir. Possivelmente, haviam premeditado o crime e foram estúpidos demais para fazer com que a situação parecesse um assalto. Mas a notícia não dizia nada disso, porque foi feita por um jornalista igualmente estúpido. Quando terminei de ler e levantei os olhos, encontrei um monte de rostos indisfarçadamente ansiosos esperando minha reação. Eu respirei fundo, baixei a cabeça e disse com voz pesada: “Quem diria, uma moça que parecia ser tão legal com uma carreira tão linda pela frente... Que pena...”. Aquele dia foi simplesmente magnífico.

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