domingo, 9 de janeiro de 2011

Totó

      Meu cachorro morreu na madrugada de segunda pra terça-feira (03/01/2011), aos 17 anos, vítima de uma terrível doença incurável que eu não sei qual é. É uma doença que estroncheia, e nos últimos meses o Totó (levem em consideração que eu tinha só uns 4 anos quando o batizei e por pouco ele não se chama Mocotó em homenagem ao cara da Malhação) estava muito troncho e gagá. Era um vira-lata quase-pequeno preto. Teve uma morte dolorosa: não conseguia comer, beber ou ficar de pé nas quatro patas. Ele latiu muito durante umas duas semanas porque estava com dor. Nas últimas horas só teve forças pra chorar. Desconfio que ele não queria morrer, mesmo não sabendo exatamente que iria morrer, o que é morte, se existe Deus, qual o sentido da vida, pra onde se vai depois que se morre e se lá tem Coca-cola. Ele gostava de Coca-cola. Eu não sei se Coca-cola mata, mas ele morreu de uma terrível doença incurável que eu não sei qual é, não de beber Coca-cola. Espero, sinceramente, que essa terrível doença não seja provocada pela ingestão de Coca-cola porque eu não quero morrer e também não sei se há Coca-cola depois da morte.

      Sua biografia tem poucos fatos marcantes, tendo em vista que o bicho vivia no quintal de casa só saindo em acasiões muito especiais, como as campanhas de vacinação. Quintais não são lugares muito animados quando não tem criatividade pra brincar ou inventar histórias. Totó estimulava sua primitiva imaginação praticando entusiasticamente fitofilia com as folhas do açaizeiro que caiam em nosso quintal. Há uns anos, nós cortamos o açaizeiro e o Totó teve que se contentar com vassouras inocentes esquecidas por engano no quintal. Felizmente, faz um tempo que ele já havia perdido sua libido sexual poupando-nos do baralho constrangedor ecoando pela madrugada gerado por um cachorro comendo uma vassoura. Especulasse que morreu “virgem”: na única tentativa de acasalamento com outro sujeito da mesma espécie de gênero oposto que temos conhecimento, encontramos a pobre cadela assustada e encolhida na lavandeira. Ninguém sabe o que aconteceu naquela madrugada, mas a pobre cachorra nunca mais foi a mesma.

      Todos os dias alguém ia ao quintal e dava atenção a ele, mas Totó não recebeu carinho o suficiente pra crescer como um cachorro sem complexos. Ele não era muito amistoso com estranhos e por causa disso tinha fama de brabo. Na verdade, ele era mesmo brabo e em seu histórico criminal constam tentativas de homicídio. Totó já provou o sabor do sangue humano. Mas no fundo ele tinha bom coração (eu acho). Um dos fatos mais marcantes e curiosos de sua vida foi uma automutilação provocada sem motivos aparentes: Totó, após anos de tentativas frustradas, conseguiu morder e comer seu próprio rabo. Fez isso a sangue frio, sem emitir gemidos de dor. O único barulho que se ouvia era dos dentes esmagando ossos. Presenciei a cena chocado, mas à época eu ainda não era esperto o suficiente pra filmar, colocar no Youtube e tornar Totó mundialmente famoso. Um terapeuta canino diria que ele era esquizofrênico e estava sendo vítima de estresses insuportáveis, mas eu digo que ele fez aquilo porque não gostava do rabo.

      Minha relação com Totó era muito pacífica: ele ficava no canto dele e eu no meu. Às vezes eu aparecia por lá, falava com ele, jogava um biscoito e em algumas ocasiões até passava a mão em sua cabeça. Sentia um pouco de nojo porque Totó, apesar de não se importar em tomar banhos de chuva, só tomou dois meio-banhos em toda sua vida. Ele odiava que jogassem água nele e algumas das tentativas de homicídio mencionadas anteriormente foram motivadas por isso. Se Totó fosse católico e supersticioso, talvez tivesse vontade de morder São Pedro. Eu, particularmente, não entedia porque o cachorro não entrava na casinha que construímos especialmente pra ele. Acho que não o agradava o lugar no quintal em que ela foi erguida, mas, quem sabe, o problema fosse a arquitetura: às vezes ele gostava de ficar embaixo dela. A casinha foi demolida a fim de evitar recordações que possam provocar nostalgia, melancolia ou algum tipo de tristeza. Uma parte de mim achou isso de uma frescura sem tamanho.

      Eu gostava do Totó porque eu havia me acostumado com a presença dele no quintal e porque fui psicologicamente estimulado durante vários anos a considera-lo uma parte da família. Antes de ficar idoso, ele sempre latia ao ouvir o barulho do carro quando chegávamos em casa e parecia se alegrar sinceramente quando nos via. Acho que ele gostava da gente: em parte porque erámos sua única família e ele não tinha escolha e, principalmente, porque o alimentávamos. Às vezes eu ia lá e falava coisas pessoais e ele me olhava com aquela cara de bunda que algumas pessoas interpretam como clara compreensão dizendo coisas do tipo: “ele me entende, parece gente”. Eu interpreto como total incompreensão criando uma expressão neutra que, se formos reparar bem, se parece muito com perplexidade. Pessoalmente, se eu fosse um cachorro e alguém viesse falar comigo pensaria algo como: “o que essa gente tá tentando me fazer entender!? Eu sou um cachorro, caralho... Tô com fome. Será que ele vai me dar comida? Quero comida, porra! *latido feliz*”. Eu olhava o Totó nos olhos enquanto ele me olhava de volta e certas vezes até tentava me comunicar telepaticamente com ele, mas o Totó era só um cachorro como outro qualquer e não uma mascote do Professor Xavier. Eu gostava da sua cara simpática e do jeito imbecilmente fofo que as patas traseiras dele ficavam quando se deitava. Suas atividades favoritas eram: comer, beber e olhar pra o nada. Foi enterrado no terreno ao lado de casa e eu espero que não vire uma assombração, dada à proximidade com o meu quarto. Teve uma vida tranquila e eu vou sentir sua falta.

2 comentários:

Repórter de Sandálias disse...

Tomara q o toó não encontr o São Pedro lá no céu! Ou será q o céu pra cachorros é diferente do dos humanos, ou será q pelas tentativas de homicídio o totó terá de ir pro purgatório, ou pior, pro inferno?? Arf!! Sinto mto pela sua perda...

Anônimo disse...

todos esses textos que você escreve pra mim.

eu os adoro.