sábado, 29 de janeiro de 2011

Brincadeira.

 

     Ele pensou em dizer gentilmente que queria comê-la e depois ficar lá, parado, esperando qualquer coisa. Refletiu melhor e chegou à brilhante conclusão de que não existe um jeito gentil de dizer isso e, mesmo assim, decidiu dizer de qualquer jeito. O coitado foi vítima de uma daquelas vontades urgentes (e por isso sinceras, mas nem por isso menos raras e estranhas) que nos procuram quando estamos distraídos pensando em obrigações importantes. Sentiu como se estivesse segurando o xixi por semanas, meses, e, de repente, lembrasse que precisa urinar. Já tinha visto dezenas de mulheres mais bonitas e, aparentemente, mais interessantes que aquela e não entedia ao certo o porquê daquela ânsia. Não que ela fosse feia, pelo contrário, era linda. Mas a beleza, felizmente, não é um bem mesquinho que escolhe ser pertencido por poucos. Mas é claro que você pode ter a impressão de que isso é a maior idiotice que já leu, dependendo do quanto do globo terrestre você já explorou e do seu grau de otimismo.

     Fato é que os únicos objetivos de vida daquele pobre coitado antes de vê-la eram: terminar seu salgado xexelento, voltar para casa, sentir sono e dormir. Depois de ser abalado pela visão dela, ele incluiu entre terminar o salgado xexelento e voltar para casa se decepcionar. Era realista e tinha bom senso suficiente para saber que não conseguiria sexo, se contentou em apenas tentar conseguir sexo porque “isso era melhor do que nada”. Bom, isso foi o que ele pensou, eu, particularmente, não vejo lógica nesse raciocínio doentio. Eu acho o benefício da dúvida e a preservação do bom senso melhor que uma certeza muitíssimo provável, principalmente quando essa certeza muitíssimo provável muitíssimo provavelmente vai custar tua dignidade. Voltando. Ele não sabia quais eram os objetivos de vida dela, mas queria que se apaixonar por ele fosse um deles. Ele sentiu que estava apaixonado por ela. Se formos analisar as reações biológicas (garganta seca, frio no estômago, aceleração do batimento cardíaco) vamos perceber que ele estava mesmo apaixonado por ela. Uma paixão que, possivelmente, duraria menos de meia hora, mas ainda assim uma paixão. Não vamos desmerecer as coisas só por causa do seu tempo de vida.

     Ela estava comendo um salgado xexelento diferente do dele. Ele já estava quase acabando o seu e decidiu pedir outro. Estavam sentados no balcão, separados por duas cadeiras. Ela entrou na padaria fugindo da chuva, era uma daquelas chuvas fortes e assustadoras que devem ser iguais a chuva do fim do mundo. Tinha o vestido encharcado, os cabelos encharcados, as sandálias encharcadas e a bolsa encharcada. Resumindo, ela estava muito encharcada. Ele achou divertido o modo como ela entrou correndo. Depois achou divertido pensar em como poderia se divertir junto com ela. Estava tendo muito trabalho tentando encontrar um jeito de falar com ela e, quando percebeu que não se atrevia nem a olhá-la diretamente, descobriu que seria mais difícil do que imaginava a princípio. O nervosismo, a chateação, a sensação de impotência e o seu bom senso (que resolveu acordar) fez as coisas ficarem menos divertidas e ele resolveu apenas esperar a chuva passar para ir embora. Mas aí ele pensou “foda-se” e foi lá falar com ela. Parece absurdo, porém coisas assim acontecem todos os dias, só as achamos absurdas porque não sabemos que elas acontecem com mais frequência do que o necessário para serem classificadas como realmente absurdas.

     Ele sentou-se na cadeira ao lado da dela e disse de cabeça baixa: Acho que tô apaixonado por ti. Imediatamente se arrependeu e pensou que seria menos ridículo ter dito queria comê-la.

     Ela estava comendo e se engasgou com o susto, depois se virou, franziu as sobrancelhas e perguntou o que quase qualquer um no lugar dela perguntaria: Quê!?

_ Er... Acho que tô apaixonado por ti.

_ Er... Tenho namorado, desculpa.

_ Hã?

_ Tenho namorado.

     Nesse momento, por um milésimo de segundo, ele se sentiu como deve se sentir alguém que é jogado num buraco negro: não foi nada divertido, ele ficou um pouco triste e se sentiu levemente despedaçado. Permaneceu uns cinco segundos calado antes de se recuperar do choque e perguntou rápido, sem raciocinar, com o orgulho ferido:

_ E daí?

_ Como assim, cara? O que tu quer?

_ Nada, ora, só queria falar contigo.

_ Já falou. Posso terminar meu lanche?

_ Tu é antipática, hein. Uma pessoa diz que tá apaixonada por ti e tu trata com essa indiferença toda.

     Vale salientar que nesse momento ele já não sabia mais o que estava dizendo porque, subitamente, se deu conta do que estava fazendo e isso o fez ficar parcialmente descontrolado. Tudo o que ele começou a dizer a partir de quando ela disse que tinha namorado foram palavras impensadas que vinham de um lugar perto do seu inconsciente e eram articuladas pela sua boca sem que ele desse aprovação. Ele estava nervoso para caralho. Ela estava perplexa e assustada a ponto de cogitar sair correndo. Talvez ela só não tenha saído correndo porque cogitou a possibilidade dele correr atrás dela.

_ Desculpa, olha, não quis te ofender. Mas eu realmente não tô interessada. Posso continuar comendo, por favor?

_ Claro. Posso ficar te olhando?

_ Er... pode... Ou melhor, não pode, não. Cara, tu é muito estranho.

_ Eu? Não sou, não. A situação que eu criei é que é estranha.

_ Pessoas estranhas fazem coisas estranhas.

_ Ahn... tens razão. Ei, tu é legal.

_ Valeu. Olha, não tô de bom humor, tô toda molhada, cansada, e ainda tenho que lidar com um desconhecido me assustando dizendo do nada que tá apaixonado por mim. Não quis te ofender, tá? Se fosse outra hora e tal.

_ Tu tem namorado.

_ Não tenho, não.

     Então foi como se tudo fizesse sentido para ele. Não que as coisas tivessem perdido completamente o sentido, mas ele estava vivendo uma situação dramática e as situações dramáticas exigem sensações à altura. Ele notou que tinha um sorriso infantil no rosto e se ele se olhasse no espelho perceberia que seus olhos estavam brilhando. Na verdade eles não estavam, mas a felicidade nos faz enxergar essas coisas.

_ Ah! Sua mentirosa!

_ Ora, o que tu queria que eu dissesse?

_ “Tô apaixonada por ti também”, seria legal.

_ Haha. Tu não tá apaixonado por mim. Para com isso.

_ Tu quer saber dos meus sentimentos mais do que eu que tô sentindo eles?

_ Hum... Touché. Olha, a chuva tá passando, eu vou indo.

_ Tu vai embora assim?

_ Vou. Tu é legal, mas eu realmente não tô interessada.

     Então ele se sentiu de volta ao buraco negro. Foi pior desta vez porque, já que a moça não tinha namorado, ele deduziu que o único motivo que motivaria seu desinteresse era sua condição desinteressante. O que, convenhamos, é um pensamento válido, apesar de muito egocêntrico e um pouquinho futil. Se há alguns segundos ele estava feliz, passou a ficar magoado e ressentido. Já estava cansado de experimentar tantas sensações diferentes em um intervalo tão curto de tempo e resolveu acabar de vez com aquilo.

_ Só falei contigo porque não consegui ficar indiferente à tua presença. Senti uma atração muito forte e fiquei com vontade de ter aqui nessa merda de balcão e depois pro resto da vida.

     Então ele se sentiu em paz. Baixou a cabeça para rir e se acostumar com aquilo. Não sabia qual seria a reação dela, mas não esperava aquela reação dele. Essa sensação ele ainda não havia experimentado no meio de tudo aquilo e estranhou quando seu coração desacelerou. Sentiu saudades da adolescência, lembrou dela e riu de novo. Ela o olhava franzido a testa, talvez estivesse sem jeito ou constrangida, ou talvez estivesse esperando que ele arrancasse sua roupa. Mas ele balançou a cabeça, tirou uma nota de cinco reais do bolso, colocou no balcão, respirou fundo e saiu andando na chuva.

     Ela ficou um minuto estática, assimilando tudo aquilo, depois saiu correndo atrás dele como uma louca desesperada. Colocou as sandálias nas mãos, pisou em poças e o encontrou ofegante, quase dobrando a esquina. Depois o beijou sem fôlego, sem pudor e sem razão... Não, isso não aconteceu. Ela só pensou “cada louco” e continuou comendo seu salgado xexelento, balançando a cabeça. Mas ele imaginou que isso poderia ter acontecido e voltou para casa com um novo sorriso infantil. Antes de dormir, relembrou como ele havia sido corajosamente idiota e se sentiu muito bem por isso. Ele teve consciência de que foi ingenuidade. Depois, tendo terminado de passar mentalmente as cenas, cogitou sorrindo que ela poderia ter se arrependido e decidiu voltar à padaria no dia seguinte. Sabia que pensar isso era igualmente estúpido e que as chances de revê-la eram bem pequenas. Então ele se permitiu fazer voluntariamente o que muita gente faz sem perceber: se fingir de burro e brincar com a sua esperança.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Casualidades Cruzando Fatos Demasiadamente Triviais E Os Levando A Consequências Totalmente Desimportantes.

      

       “A verdade é uma faca de dois gumes”. Disse ele, pessimamente porre. Um dos piores tipos de porres são os terrivelmente filosóficos. Os amigos o olharam com aquela expressão de descaso que recebem os porres e um deles o aconselhou a parar de beber. Mas ele entornou outro copo de tequila e enfiou o limão no nariz antes de dizer num tom solenemente exagerado: “Vocês não aguentam a verdade, isso sim!”. Se levarmos em consideração que a existência da grande maioria das pessoas, incluindo aquelas presentes naquele bar/boate/antro, não diz respeito e não afeta significativamente a quase ninguém e considerarmos quase-ninguém um número fictício originário a partir da comparação da quantidade gigantesca de pessoas que dividem o mesmo planeta (talvez universo) que nós com o produto formado pela soma do número de nossos amigos/familiares/colegas-de-trabalhos/pessoas-que-podem-fazer-exatamente-o-mesmo-ou-melhor-aquilo-que-fazemos/conhecidos/seguidores-do-twitter, podemos considerar: a vida não passa de casualidades cruzando fatos demasiadamente triviais e os levando a consequências totalmente desimportantes. Em outras palavras, a vida é um troço muito louco.

       Por acaso, no exato momento em que ele proferiu aquelas palavras, uma moça tremendamente alcoolizada passou por trás de sua cadeira, esbarrando nas pessoas que dançavam e borrando sua maquiagem com lágrimas de bêbada. Outro dos piores tipos de porres é aquele formado pelos tremendamente melancólicos. Ela teve um insight e, subitamente, parou de chorar, parou de andar e disse, enrolando as palavras num momento de total falta de lucidez: “Eu sempre disse isso!”. Ela ficou lá, imóvel, estática. Não queria nem mesmo respirar, com medo de que a menor perturbação no ar estragasse aquele momento que ela julgava ser um daqueles mágicos que precedem as coisas muito especiais. Ela sabia que aconteceria algo muito especial porque além de pertencer ao grupo dos bêbados melancólicos, pertencia ao subgrupo dos tristes bêbados otimistas que acham que sabem de tudo. Uma amiga do carinha, o primeiro bêbado, riu e comentou com o resto da mesa: “Gente, a verdade não está lá fora, ela tá dentro das garrafas de tequila”, então ela virou outro copo e aconselhou o resto da mesa a fazer o mesmo para aquela coisa toda fazer mais sentido. Ele levantou-se.

       O rapaz era um rapaz normal, daqueles rapazes normais que tem de monte por aí e costumamos ver sem reparar*. A moça era mais chamativa: tinha uma beleza tão estranha que, de tão estranha que era, se parecia muito com feiura. Ele havia se levantado rápido, reagiu automaticamente à fala dela. Estava tão ansioso e frustrado por ninguém dar atenção às suas frases de impacto que nem notou que não conhecia quem disse aquela coisa simpática. Ele estava bêbado demais para distinguir traços fundidos aos borrões multicoloridos criados pelas luzes da boate, desistiu no milésimo de segundo que tentou fazê-lo: sentiu que ficaria com dor de cabeça, ou vomitaria, ou choraria ou talvez até acontecesse algo bem pior. Ela o olhou no fundo dos olhos, ou ao menos era isso que acreditava estar fazendo. Passado uns dez segundos, depois que ele finalmente se acostumou a ficar ereto sem sentir que iria cair, ele falou. O que aconteceu a seguir foi admirável: um dos diálogos mais bizarros, quiçá o mais nosense e babaca, que já aconteceu ou acontecerá naquele lugar que costuma abrigar os tipos mais variados de bêbados, idiotas, pessimistas, sonsos, poetas, escritores, porra loucas, intelectuais e outras pessoas que costumam se classificar e/ou agir de acordo com as características típicas e socialmente reconhecidas de gêneros humanos preconceituosamente definidos tão estranhos quanto os já citados.

          _ Tu me entende... Disse ele com cara de quem é compreendido.

          _ Claro que eu te entendo... Disse ela com cara de quem compreende.

        _ A vida toda... Eu fiquei esperando... Alguém que realmente me compreendesse.

        _Pra completar o vazio sem nome que tu não consegue preencher com nada?

        _Com nada... Porque nada é o que são todas as coisas agora.

         _Hã... Que coisas?

          _As coisas! O resto de tudo sabe?

          _Ah, agora eu sei.

         _Tu sente o mesmo, não é? Sabe que ninguém te conhecia até agora, agora que a gente tá aqui.

          _ Claro! Eu vivo dizendo isso pra minha mãe, sabe.

          _ Tua mãe?

          _ É! Eu digo pra ela pra ela largar do meu pé porque ela não me entende. HAHAH

          _ Ah... Tu é muito legal, sabe?

          _ Eu sei!

             (...)

         _ Mas tu me entende, né? Tu sabe a verdade?

           _ Claro que eu sei. Ninguém te entende, eu não me entendo, as pessoas não se entendem, a sociedade é hipócrita, abaixa o capitalismo, essas coisas todas.

         _ Isso foi engraçado.

         _Eu sei! Tu me entende também. Eu te amo, cara.

        _ É! Eu te amo também, cara. Vamos sair daqui e se amar longe dessa confusão e dessa gente que não se respeita.

         _Porra, Legião! Eu te amo mesmo!

        _Vou vomitar.

         _Não em mim, seu merda!

        Os dois saíram cambaleando, agarrados. Os amigos do rapaz tentaram impedir, mas ele mandou eles irem para perto da casa do caralho e já estava todo mundo meio sem paciência/meio bêbado então deixaram por isso mesmo. Uma amiga da moça estava vomitando no banheiro, a outra estava sentada num lugar isolado, arrependida de ter saído de casa, enquanto as outras duas estavam dando apoio moral à primeira, então ninguém deteve ou viu quando a garota saiu atracada com o carinha. Foram até o carro dele e o carro dele os levou até perto do quarto dele e lá eles se “amaram” (transaram loucamente). No outro dia, ela acordou assustada e só não gritou porque imaginou que o barulho do grito pioraria sua dor de cabeça e porque sentiu um pudor que há tempos não sentia. Não se lembrava de nada. Um estranho, nu, babava no travesseiro. Ela se sentiu dolorida, invadida, arrependida e suja. Sentiu vontade de chorar e chorou. Um fato curioso causado pela amnésia alcoólica é que ela transforma memórias recentes, geralmente da noite anterior, em coisas parecidas a fragmentos de sonhos estranhos: por mais que tentemos ligar, esticar, copiar e colar, não deixam de ser fragmentos. Outro fato curioso é que sonhos, mesmos aqueles que não são tão estranhos, são estranhos por natureza.

       A verdade é que naquele dia, após meses adiando, ele fez o teste para HIV e o resultado deu positivo, então resolveu chamar os amigos e abrir o jogo. Ele não imaginava que teria que ficar bêbado para fazer isso e também não imaginava que fosse tão difícil contar isso mesmo bêbado. A morte é um troço tão louco quanto a vida: uma das diferenças básicas é que da morte não sabemos nada, no caso da vida pensamos que sabemos alguma coisa. Outra é que na vida costumamos nos mexer muito mais do que na morte. Voltando, pela lógica, podemos considerar que o fim da vida do rapaz, como o fim da vida da grande maioria das pessoas é: um fato demasiadamente trivial causado por uma casualidade que afeta significantemente a vida de quase ninguém. A não ser, é claro, que ele fosse a reencarnação de Jesus e ressuscitasse no terceiro dia, o que é muitíssimo improvável, já que isso desrepeita muitos dogmas e seria inaceitável para igreja Jesus morrer de AIDS, eu acho. De qualquer forma, algumas pessoas sofrerão e/ou sofreram. Não é o nosso caso, graças a deus. Porém, também não é o caso de nossa intrépida heroína que se recordou num momento pífio de lucidez, causado por uma sinapse neuronal muito oportuna que a lembrou de ter tido suspeito de gravidez a umas semanas, de usar a bendita camisinha. Ela nunca mais viu o cara e nem desconfiou que fosse porque ele havia morrido meses mais tarde: uma consequência tão desimportante para ela quanto para o resto de todos nós.

 

*Saramago escreveu “se podes olhar vê, se podes ver, repara”.

Não sei porque o diálogo ficou tão fora de formatação, tentei ajeitar e não consegui. ):

Me diverti muito escrevendo isso. Espero que alguém também se divirta. Obrigado por ler até aqui… Ou obrigado pela curiosidade que fez você ler só isso aqui.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Totó

      Meu cachorro morreu na madrugada de segunda pra terça-feira (03/01/2011), aos 17 anos, vítima de uma terrível doença incurável que eu não sei qual é. É uma doença que estroncheia, e nos últimos meses o Totó (levem em consideração que eu tinha só uns 4 anos quando o batizei e por pouco ele não se chama Mocotó em homenagem ao cara da Malhação) estava muito troncho e gagá. Era um vira-lata quase-pequeno preto. Teve uma morte dolorosa: não conseguia comer, beber ou ficar de pé nas quatro patas. Ele latiu muito durante umas duas semanas porque estava com dor. Nas últimas horas só teve forças pra chorar. Desconfio que ele não queria morrer, mesmo não sabendo exatamente que iria morrer, o que é morte, se existe Deus, qual o sentido da vida, pra onde se vai depois que se morre e se lá tem Coca-cola. Ele gostava de Coca-cola. Eu não sei se Coca-cola mata, mas ele morreu de uma terrível doença incurável que eu não sei qual é, não de beber Coca-cola. Espero, sinceramente, que essa terrível doença não seja provocada pela ingestão de Coca-cola porque eu não quero morrer e também não sei se há Coca-cola depois da morte.

      Sua biografia tem poucos fatos marcantes, tendo em vista que o bicho vivia no quintal de casa só saindo em acasiões muito especiais, como as campanhas de vacinação. Quintais não são lugares muito animados quando não tem criatividade pra brincar ou inventar histórias. Totó estimulava sua primitiva imaginação praticando entusiasticamente fitofilia com as folhas do açaizeiro que caiam em nosso quintal. Há uns anos, nós cortamos o açaizeiro e o Totó teve que se contentar com vassouras inocentes esquecidas por engano no quintal. Felizmente, faz um tempo que ele já havia perdido sua libido sexual poupando-nos do baralho constrangedor ecoando pela madrugada gerado por um cachorro comendo uma vassoura. Especulasse que morreu “virgem”: na única tentativa de acasalamento com outro sujeito da mesma espécie de gênero oposto que temos conhecimento, encontramos a pobre cadela assustada e encolhida na lavandeira. Ninguém sabe o que aconteceu naquela madrugada, mas a pobre cachorra nunca mais foi a mesma.

      Todos os dias alguém ia ao quintal e dava atenção a ele, mas Totó não recebeu carinho o suficiente pra crescer como um cachorro sem complexos. Ele não era muito amistoso com estranhos e por causa disso tinha fama de brabo. Na verdade, ele era mesmo brabo e em seu histórico criminal constam tentativas de homicídio. Totó já provou o sabor do sangue humano. Mas no fundo ele tinha bom coração (eu acho). Um dos fatos mais marcantes e curiosos de sua vida foi uma automutilação provocada sem motivos aparentes: Totó, após anos de tentativas frustradas, conseguiu morder e comer seu próprio rabo. Fez isso a sangue frio, sem emitir gemidos de dor. O único barulho que se ouvia era dos dentes esmagando ossos. Presenciei a cena chocado, mas à época eu ainda não era esperto o suficiente pra filmar, colocar no Youtube e tornar Totó mundialmente famoso. Um terapeuta canino diria que ele era esquizofrênico e estava sendo vítima de estresses insuportáveis, mas eu digo que ele fez aquilo porque não gostava do rabo.

      Minha relação com Totó era muito pacífica: ele ficava no canto dele e eu no meu. Às vezes eu aparecia por lá, falava com ele, jogava um biscoito e em algumas ocasiões até passava a mão em sua cabeça. Sentia um pouco de nojo porque Totó, apesar de não se importar em tomar banhos de chuva, só tomou dois meio-banhos em toda sua vida. Ele odiava que jogassem água nele e algumas das tentativas de homicídio mencionadas anteriormente foram motivadas por isso. Se Totó fosse católico e supersticioso, talvez tivesse vontade de morder São Pedro. Eu, particularmente, não entedia porque o cachorro não entrava na casinha que construímos especialmente pra ele. Acho que não o agradava o lugar no quintal em que ela foi erguida, mas, quem sabe, o problema fosse a arquitetura: às vezes ele gostava de ficar embaixo dela. A casinha foi demolida a fim de evitar recordações que possam provocar nostalgia, melancolia ou algum tipo de tristeza. Uma parte de mim achou isso de uma frescura sem tamanho.

      Eu gostava do Totó porque eu havia me acostumado com a presença dele no quintal e porque fui psicologicamente estimulado durante vários anos a considera-lo uma parte da família. Antes de ficar idoso, ele sempre latia ao ouvir o barulho do carro quando chegávamos em casa e parecia se alegrar sinceramente quando nos via. Acho que ele gostava da gente: em parte porque erámos sua única família e ele não tinha escolha e, principalmente, porque o alimentávamos. Às vezes eu ia lá e falava coisas pessoais e ele me olhava com aquela cara de bunda que algumas pessoas interpretam como clara compreensão dizendo coisas do tipo: “ele me entende, parece gente”. Eu interpreto como total incompreensão criando uma expressão neutra que, se formos reparar bem, se parece muito com perplexidade. Pessoalmente, se eu fosse um cachorro e alguém viesse falar comigo pensaria algo como: “o que essa gente tá tentando me fazer entender!? Eu sou um cachorro, caralho... Tô com fome. Será que ele vai me dar comida? Quero comida, porra! *latido feliz*”. Eu olhava o Totó nos olhos enquanto ele me olhava de volta e certas vezes até tentava me comunicar telepaticamente com ele, mas o Totó era só um cachorro como outro qualquer e não uma mascote do Professor Xavier. Eu gostava da sua cara simpática e do jeito imbecilmente fofo que as patas traseiras dele ficavam quando se deitava. Suas atividades favoritas eram: comer, beber e olhar pra o nada. Foi enterrado no terreno ao lado de casa e eu espero que não vire uma assombração, dada à proximidade com o meu quarto. Teve uma vida tranquila e eu vou sentir sua falta.