sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Férias

Correr até o suor desitradar o corpo e deixar a alma evaporar sem pressa, como se não houvesse remédio pra sede. A ida justifica o caminho e nós vamos refazendo passos como uma curupira chapada voltando pra casa.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Desmembramento.

      Tem a vontade de te desossar como se limpa uma galinha indefesa. Arrancar teu sustento sem piedades ou culpas e te fazer prostrar. Renegar tua humanidade e te querer como um objeto de decoração que, no fundo, é pouco mais que inútil. Enfeitar minha vida com tuas entranhas expostas e ignorar o apodrecimento da tua essência. Pecar abusando da tua falta de discernimento como quem escraviza um cão. Não há erro que não possa ser perdoado se a vontade de cometê-lo for muito sincera.

      Tu vai sumir sem querer, porque é assim que as pessoas vão pra não voltar. Vou me entregar à pena por tédio e enjoo. Vou desistir de sobreviver, mas só até desistir ficar mais difícil que sobreviver. Não tem dor que resista a ela mesma. E nós fazemos promessas só pra ter o prazer de desfazer nosso futuro. Foi bom quando prever era sádico e tu te doía. Agora eu percebo que meu erro foi não afogar teu espírito com a minha mágoa. E me peço perdão por ter te dado vida enquanto pude.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Dentes-de-leão.

      Concluo raciocínios frágeis que se despedaçam feito dentes-de-leão buscando a brisa da primavera. A razão é pedra-bruta coberta por nesgas de limo que recusam meus toques. Luto para esculpir a cabeça da esfinge que me escancara seu peito de leão. Minhas mãos vacilam como as de um arqueiro mirando um alvo invisível. Os tempos se misturam e me vejo diante de um quebra-cabeça incompleto que montarei, já desmontei, acho que perdi. Quebro a marretadas becos sem-saída e desconstruo o labirinto.

     Resta a constatação óbvia, tão evidente quanto o toque, indiscutível como a persistência de sonhos em cornubações ancestrais que durarão até o fim das eras. O desejo primordial nascido de ausências vagas desde o estigma da concepção. A vontade de livrar-se das chagas que imolam em horários impróprios os corações mais seguros de si. Uma cãibra na alma que nos espreita igual bicho de olhos famintos que cresceu sem afago.

     O sublime apenas se insinua e sua menção já basta para explodir estrelas em faíscas que viajam por eternidades. Vejo-as num tempo fabricado por sinapses desgovernadas que trovejam em sorrisos. Tento renegar a verdade do espelho como um demente desembestado que busca fugir de sua sombra. O menos inútil é pedir arrego e dois litros de vodka. E render-se, enfim, até se entregar à perplexidade daquilo que se explica calando.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Retiro Espiritual.

      Vamos rir da cara dos crentes e mandar os responsáveis pra casa do caralho. Revolucionar nossas vidas abolindo nossas castas. Vestir trapos e nos despir da vaidade e do conforto. Esquecer a internet e anular nossa personalidade até sermos esquecidos pelos nossos pais. Bora comer manga caída, açaí do pé, peixe velho do ver-o-peso, beber a chuva que cai da calha. Morar embaixo do toldo de uma loja velha e passar fome até nossas tripas ficarem bem grudadas nos ossos. Perder a sanidade enquanto nos negam trocados e fingem que somos fantasmas. Assombrar o mundo e gemer no pé do ouvido dos falsos, dos hipócritas, dos sem caráter, da gente toda.

    Quando estivermos perto de morrer de desespero, a gente viaja no lombo de um jacaré pra o outro lado do rio e vai viver de favor em casa da floresta. Adotamos uma oncinha de estimação e um bicho preguiça: Oswaldo e Teodoro. Vamos perder as ambições e os desejos, ficar sem querer porra nenhuma além daquilo que a gente pode alcançar. E nos embriagaremos com o cheiro de mato e sereno todas as noites enquanto brincamos com mosquitos da malária. Acordaremos às seis e daremos bom dia pra os vizinhos passando à margem. Vamos lavar a roupa na água suja e deixar os dentes apodrecerem. Pegar uma disenteria de nove dias e se amar na merda.

    Morrer honestamente, sem cuidados ou chances, sem esperanças ou ilusões. Encarando nossa miséria com resignação e coragem. Vamos responder pela invenção dos nossos pecados e pela comiseração diante do pecado de todos os outros. Pedir pra um açougueiro colocar nossos órgãos num isopor com gelo, derrubar dois açaizeiros e fazer uma fogueira santa pra nossas cinzas voarem pela baia. Tá tudo planejado, tá tudo certo. Viemos com defeito, nosso lugar não é aqui, não era pra ser assim. Vamos fazer do jeito certo, fazer da pobreza a redenção, da loucura um caminho, da dor um refúgio pra frustração de não ter o que queríamos. É só olhar em volta e ver que não tem nada de mais pra ser visto.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Fragmentos kkkk

Tiago diz:
porra
preciso escrever o post pra o blog
me ajuda?
vamo fazer a 4 mãos
um diálogo
escolhe um personagem

clara diz:
xo pensar.
Kaffu, jogador de volei iraniano
21 anos

Tiago diz:
eu quero ser um urso panda que veio viver num santuário de SP
tá bom, tu veio jogar no time de são paulo
(são paulo tem time de vôlei?)

clara diz:
(tem)
(todo canto tem)

Tiago diz:
ok, tu foi levar tua namorada Zuleide ao zoológico e descobriu que eu sei ler a mente das pessoas porque fui cobaia num experimento chinês ultrasecreto que queria censurar o que as pessoas pensavam

clara diz:
QUE HISTÓRIA PÉSSIMA HAHAHA

Tiago diz:
VELHO
ok, Kaffu, eu sei que você não ama ela. Ela só quer seu dinheiro, não se engane. Me dê um amendoim.

clara diz:
só dou picolé de pistache para pandas que lêem mentes
ajuda a digestão do pensamento

Tiago diz:
eu não sei o que caralhos é um pistache, it doesn't work, opa, pensei em inglês

clara diz:
pistache é uma paradinha verde

Tiago diz:
é fruta? não tem disso na china

clara diz:
véi, como assim, pistache: http://pt.wikipedia.org/wiki/Pistache

Tiago diz:
HAHAHA
sua imunda, eu sei ler mentes não tenho um ipad no cérebro!!!

clara diz:
mas pistache tá no inconsciente coletivo!

Tiago diz:
EU NUNCA VI UM PISTACHE NA VIDA
não tem como essa imagem ter fincado no meu inconsciente pelo código genético porque nenhum panda nunca viu um pistache!

clara diz:
mas você deveria ter visto no inconsciente coletivo dos humanos]

Tiago diz:
ok, tu venceu, não tinha pensado nisso
FIM
perfeito
entrará pra os anáis da literatura do século xxi como obra exemplo da contemporaneidade

clara diz:
eu tenho senso de humor de um menino de 11 anos
sempre morro de rir com a expressão
"entrará para os anáis..."

 

 

‘brigado, clarissa

sábado, 26 de novembro de 2011

Mas não foi.

 

      Otto ouvia concentrado Regina contar como havia sido seu dia. O dia de Regina foi cheio de pequenos estresses, surpresas sem graça, diversões bobas, alterações miúdas, experiências irrelevantes e todas essas coisas pequeninas de que são feitas a maioria dos dias. Ela falava sem pausas, compassada, sem exigir comentários ou fazer perguntas. Otto falava uma besteirinha ou outra para que ela se sentisse prestigiada e estimulada. Ele era um sujeito simpático, sabia o que precisava dizer para agradar os outros. Não que agradar a maioria das pessoas seja algo digno de ser exaltado, basta ter paciência e boa vontade: as pessoas, geralmente, não precisam de muito para se entreter e rir. Pessoas gostam de rir e é só isso que torna engraçada a grande maioria das coisas pretensamente engraçadas. A voz de Regina não passava de um zumbido na caixa craniana de Otto enquanto seu pau latejava graças ao sobe-desce daqueles lábios finos e delicados.

      Regina, como quase todos nós, não falava nada de mais a maior parte do tempo. Otto não era muito exigente. Ele tinha uma boa dose de paciência e compreensão e certa tolerância ao tédio. Era a primeira vez que saia com Regina. Foi num barzinho aconchegante, com música ao vivo e gente contente. Colega de uma colega, eles se conheceram meio sem querer numa confraternização. Otto achou Regina interessante. Mas, como a maioria de seus achismos, esse também se provou insustentável diante da curiosidade de comprová-lo. O que nós faz pensar que, em alguns casos, é mais divertido dar às coisas o benefício da dúvida do que nos decepcionar descobrindo o que elas de fato são. Coisas tipo Deus.

      Claro que é totalmente discutível o que seria realmente uma pessoa interessante. Se quisermos, podemos relativizar a questão e falar de mil aspectos sem chegar a consenso algum. A título de entendimento, vamos classificar alguém como interessante se o sujeito um, numa conversa, é capaz de prender a atenção do indivíduo dois sem que o foco da atenção deste seja desviado para coisas do tipo: o possível corte pubiano que o sujeito um está ostentando. Sim, era nisso que Otto pensava enquanto Regina falava sobre as peripécias engraçadíssimas que passou até aprender a dirigir. Era difícil para Otto fingir achar aquilo divertido porque, como ele não conseguia mais atentar à fala, ficava complicado saber a hora certa de simular o riso.

      Cinco chopes e uma hora e meia depois, estavam claras para Otto duas coisas: 1 – Regina era uma mulher que despertava tesão 2 – Ela era mais óbvia que 1 + 1. Depois daquele tempo conversando, era comprovada que a única coisa realmente interessante na personalidade de Regina era sua simpatia que beirava a afetação. Apesar das tentativas de Otto de arrancar algo mais, ela se mostrava rasa e tão divertida quanto topar com o dedão na quina da parede. De tal modo que Otto, resignado e rendido diante da mesmice daquele ser humano, tentou concentrar seus esforços para criar uma situação em que pudesse arrancar as roupas de Regina com o consentimento dela.

      Regina achou Otto insuportavelmente chato e antipático. Ela percebeu seu desinteresse e a forma como ele se manifestava apenas para mostrar que não havia sofrido um derrame. Ficou decepcionada com sua falta de conversa. Além do quê, achou ofensiva a maneira como ele foi inconveniente e indelicado insistindo em falar sobre assuntos que ela não dominava. Regina ainda tentou contornar a situação contando histórias divertidas, mas a apatia de Otto era broxante. No final da noite, recusou o convite do acompanhante e preferiu voltar para casa de taxi. Ficou puta, mas sobreviveu. Mais tarde, depois de homenagear Regina, a justificava para a grande frustração de Otto se foi a jato. Ele, aliviado e contente, dormiu sorrindo pensando em como a vida era estúpida igual uma foda casual que poderia ser, mas não foi.

sábado, 19 de novembro de 2011

Estruturas Metálicas.

*Conheci Waldir enquanto fazia uma reportagem sobre tratamento psicológico na rede pública. Essa é uma parte da história dele.

 

     Waldir conta que sabe falar francês e que sua vida era bem melhor quando ganhava em euros, no período em que trabalhou no Centro Espacial de Kouru. Waldir tem 46 anos e é de Campina Grande, Paraíba. O Centro Espacial a que se refere fica perto de Caiena, capital da Guiana Francesa. “Eu trabalhava com estruturas metálicas lá. O Centro é mantido pela Agência Espacial Europeia pra o lançamento de foguetes”, explica empolgado. Waldir diz que uma vez foi parado pela polícia de fronteira. Como ele estava sem passaporte, carteira de trabalho ou qualquer documento que atestasse a regularidade da sua situação, conta que foi deportado como imigrante ilegal e voltou para Campina Grande.

      Aos 15 anos, Waldir diz que veio para Belém e depois foi para o Amapá atravessar a fronteira com a Guiana ilegalmente. “Na minha terra ninguém trabalha com isso, por isso eu vim pra Belém com o meu pai. Trabalhei em Kouru com estruturas metálicas. Lá eles lançam foguetes. É coisa mantida por uma Agência Europeia”, diz. Ele se confunde com as datas e faz força para lembrar detalhes que chegam desencontrados. Os olhos azuis de Waldir contrastam com sua pele queimada. Às vezes ele abaixa a cabeça e a fala fica um pouco relutante, como se duvidasse dela mesma.

      Há cinco anos, Waldir diz que tentou repetir a mesma saga que lhe trouxe a Belém trinta anos atrás. “Eu ia atravessar a fronteira com o Amapá pra trabalhar com estruturas metálicas lá na Guiana. Eu trabalho com estruturas metálicas e eles têm um Centro Espacial lá”, conta. Dessa vez, Waldir não conseguiria chegar até a Guiana. Ele fala que assim que chegou à rodoviária de Belém teve todos os seus pertences e documentos roubados enquanto sofria um ataque epiléptico. Desde então, Waldir mora nas ruas e afirma que consegue dinheiro fazendo bicos como eletricista e produzindo estruturas metálicas. “Na rua ninguém respeita. Ninguém ajuda. Já sofri várias agressões enquanto tava tendo ataque”, fala.

      Waldir freqüenta um centro de recuperação para dependentes químicos. A assistente social que o acompanha fala que o uso prolongado do álcool causou danos cerebrais que não podem ser revertidos. Ela explica que não dá para identificar exatamente o que é verdade e o que é delírio. Waldir precisa voltar para as ruas todo final de tarde porque não há residências terapêuticas que acolham moradores de rua como ele. Vez ou outra aparece no centro com sinais de agressão.

      Um promotor ficou de arranjar vaga em um abrigo e Waldir espera ansioso pela chance de dormir em uma cama. “O promotor ficou de me ajudar, mas eu quero mesmo é voltar pra minha terra”, conta. No centro em que é atendido, já foi tentado contato com sua família na Paraíba. Ninguém se mostrou interessado em saber notícias suas. A assistente social explica que em casos assim a rejeição familiar pode ser grande. O maior sonho de Waldir é rever a mãe.

      Difícil saber quanto tempo ele esperou para contar sua história. No centro, ninguém tinha conhecimento de que Waldir chegou ali graças a uma tentativa frustrada de ir para a Guiana Francesa. Ele parecia estar contente por receber atenção de alguém que não o tratava como paciente. Waldir tem fé que vai conseguir melhorar. A boca quase sem dentes e suas roupas velhas e muito gastas não chamavam mais atenção que os seus pés. Descalços, sujos e feridos, eram pés de quem já viveu coisas que a maioria prefere ignorar que existem. Só Waldir, por falta de opção, parece acreditar nelas.

sábado, 12 de novembro de 2011

Falhas Na Parede.

      Tinha aquela lasca branca na parede verde que eu admirava antes de dormir. Um pedacinho de parede sem tinta, uma besteirinha. Ela ficava bem no lugar iluminado pela lua quando passava pelas frestas da janela. Era em frente à minha cama, e eu me colocava de bruços com a cabeça em sua direção. Acho que meu ciclo de sono combinava com o da lua. Toda vez que a insônia vinha forte, a lasquinha parecia mais iluminada e branca.

      Aquele pedacinho de casa irregular me causava uma sensação estranha. Era como se aquilo fosse o certo, o lascado e feio, mas eu sabia que era errado. Era errado porque aquele negocinho estava oprimido por uma vastidão de tinta verde-bebê, certinha e harmônica. Mas aquele troço realmente me agradava. Talvez só achasse aquilo bonito porque era algo ridículo no meio daquela parede tão bem pintada, ou quem sabe fosse só o tédio e a insônia me desregulando os sentidos.

      Não sei quando eu percebi, só sei que já não adiantava mais nada. A lasquinha cresceu até tomar conta de toda parte inferior da parede à esquerda. Ela continuou avançando tímida, silenciosa, que nem raiz cavando o solo. Eu não me opus nem nada, se ela quisesse crescer, que crescesse. Pouco tempo depois, o quarto já estava completamente branco e a argamassa da parede soltava um pó que começou a me sufocar.

     Numa manhã de domingo, passei o aspirador de pó nas paredes. Em alguns pontos era possível ver até pedaços de tijolo. Meu quarto estava horrível. Porém, antes de eu realmente começar a me incomodar, os tijolos resolveram cair de maduros. Toda noite caiam dois ou três tijolos. Simplesmente se despregavam das paredes e se espatifavam no chão. Às vezes ficava com medo de um deles cair bem em cima da minha cama. Talvez fosse o cimento, sei lá.

    Minha casa caiu aos pouquinhos. Nem percebi muito bem. Uma vez fui abrir a porta e ela estava no chão. Daí choveu e eu notei que nem telhado tinha mais. Voou, não sei. Quando inventei de olhar pela janela, vi que ela tomava todo espaço que antes era ocupado por uma das laterais da casa. Perdi foi tudo. Não sei bem o porquê, nem como, não sei se eu mereci, nem acredito nessas coisas. Agora eu vivo por aí, torcendo pra o mundo não desmoronar também. Se desmoronar, bom... Nunca entendi muita coisa dessa vida mesmo.

sábado, 29 de outubro de 2011

Bobagem.

Refaço os passos como se assim pudesse mudar o sentido dos meus caminhos. Mas não há redenção no passado. De qualquer forma, oprimido pelo peso do meu peito, não tenho escolha se não contemplar os espaços vagos que o tempo cultivou em mim. Becos sem saída, labirintos sem esquinas, passagens sem destino.

Sou o protagonista do filme que assisto e a solidão na plateia me dá uma paz estranha. Eu, ali, me basto como se no mundo não houvesse mais nada pra necessitar ou preocupar. Revivendo memórias, me esqueço do presente e abro de mão de existir em linha reta. Vivo ao contrário.

Ouço o eco das coisas velhas reverberando no espaço vazio. As pinturas estão desbotadas, o ar é úmido, eu toco em teias densas, o silêncio é cortante, a ampulheta gira igual a hélice de um monomotor inútil e só o que há a fazer é cair, cair, cair... cair até não poder mais. E quando o chão inevitavelmente chegar, trará a lembrança de que nada permanece suspenso pra sempre. Nem o tempo, nem as memórias.

Tudo se muda, tudo se esvai.

sábado, 22 de outubro de 2011

O Paraíso São Os Outros.

      Seu Alberto morreu aos 93 anos. Como todo velho que passou dos 90 que se preze, ele já se organizava para o fim. Dizia à sua família (e a ele mesmo) que estava pronto e não tinha medo. Assumir que se está preparado pra morrer é uma mentira válida e reconfortante, daquelas que a gente finge que acredita por pura conveniência. Além do mais, contrariar alguém que está pra morrer é sacanagem, ainda mais quando isso pode tornar a coisa toda da morte ainda mais assustadora. Seu Alberto não estava pronto mesmo, morrer era a parte fácil.

   Ele acordou numa sala oval inundada por uma luz branca muito enjoativa. Três anciões vestidos com túnicas azuis vieram lhe saudar com um sorriso grande. Deram as boas-vindas e contaram que seus parentes o aguardavam ansiosos. Seu Alberto gelou. Ele havia saído de casa aos 16 anos justamente porque não gostava da família na qual tinha nascido. E lá estavam seus pais de braços abertos, descarados, buscando reconciliação. Abraçou-os por medo de causar má impressão. Ele achou que uma atitude mesquinha, logo de cara, faria com que os administradores checassem novamente sua ficha: eles poderiam descobrir que cometeram um engano o fazendo subir ao invés de descer. 

     O céu era um tédio. As pessoas gastavam a maior parte do tempo se reunindo em grupos de discussões pra debater coisas relacionadas à vida que deixaram pra trás. Se teorizar a existência já não é tão divertido quando estamos vivos, imagine o quanto isso pode ser insuportavelmente chato quando a vida nem nos diz mais respeito. O que mais revoltou seu Alberto era a empolgação e a forma como estranhos eram efusivos. Não respeitavam coisas básicas, como sua privacidade e a falta de empatia entre ele e todos os que tinha conhecido até então. Como ninguém precisava dormir, a convivência forçada era inevitável. Fiscais do governo (ou coisa assim) iam até a casinha de seu Alberto convidá-lo para as reuniões. Ele poderia não ir, mas se não fosse, não teria mais nada pra fazer além de se martirizar.

    Não havia jogos de azar, televisão, carne ou piadas depreciativas. Nada que incitasse a competição, a vaidade, o egoísmo ou qualquer coisa que lembrasse a natureza humana da vida terrena. Havia, porém, música clássica, aulas de yoga, passeios de bicicleta, hidroginástica e deliciosas refeições vegetarianas à base de soja. As pessoas eram condescendentes, educadas, simpáticas, prestativas, altruístas e pairava no ar uma nuvem de hipocrisia ignorada. No céu, a utopia comunista era real e aquilo, na prática, era bem mais inacreditável que nas idealizações. Seu Alberto percebeu logo que o paraíso era responsável por algum tipo de lobotomia que deixava humanos parecidos a terapeutas motivacionais.

      Depois de dois meses, não havia quase resquícios do desencarnado que estava pensando em tentar se suicidar. Seu Alberto resolveu ceder à pressão das pessoas e começou a participar de fato das atividades. Ele percebeu que a misantropia iria tornar a eternidade insuportável. Uma coisa é suportar a vida, outra bem diferente é aguentar algo que não acaba nunca. Apesar da saudade que sentia da esposa e dos poucos amigos, seu Alberto foi se integrando aos grupos por osmose. Virou um velho sorridente, agradável, bem humorado e muito cínico. Fez uns colegas, começou a ter aulas de violoncelo, a caminhar no finalzinho das tardes e aprendeu a cozinhar bolo de milho com canela. A vida após a morte não era muito diferente da vida antes dela. Seu Alberto não estava muito feliz, mas estava distraído o suficiente pra se esquecer disso. O céu não era um lugar tão ruim, afinal, bastava fazer um esforço pra acreditar nele.

sábado, 15 de outubro de 2011

Pessoas são só pessoas, disqui.

      Essa aparente resignação que tu tenta demonstrar é ridícula. Eu sei que tu te desespera depois das três da manhã, quando não consegue dormir e não sabe mais o que fazer ou pra quem ligar. Eu sei também que tu diz mais o que querem ouvir do que o que tu realmente gostaria de dizer. Consigo sentir de longe teu fedor de medo, teu pânico da solidão. Essa preocupação te parece ser tão concreta porque ela já é real, basta tu estender a mão pra acariciar teu monstro. Não há ninguém por perto, tu tá numa ilha mandando desesperadamente sinais de fumaça pra ninguém. As pessoas nem sabem fingir que se importam direito. É cada um lutando contra si, por si. Esperar reconhecimento e afeição de pessoas irrelevantes é o mesmo que se igualar a essas pessoas. Tu é diferente, porra, só falo essas coisas porque eu não posso te deixar te perder assim.

      Para de esperar dos outros o que tu não pode dar a ti. Ninguém pode te salvar de ti, fora tu mesma. Segura as pontas, levanta a droga da cabeça e aprende a ter orgulho do que tu é. A vida é escrota, difícil, cansativa, só às vezes é recompensadora, não é preciso ser gênio pra descobrir essa merda: ao invés de lamentações, tu deveria te esforçar mais pra virar parte da minoria que consegue esquecer isso. O segredo é fazer justamente o contrário do que tu tá fazendo agora: tu precisa quase te bastar, precisa gostar do teu silêncio, precisa não ligar pra quem não importa, precisa aprender a passear por dentro de ti, não esperar que os outros te convidem pra sair! Tu tem o poder de saciar tuas vontades independente da vontade dos outros. E se a tua vontade for alguém que não te quer, substitui o alvo, o alvo pouco importa, é só um pretexto.

      Querer coisas alcançáveis não é tão difícil, basta tu parar com essa mania estúpida de tratar pessoas como se elas fossem mais do que apenas pessoas. Ninguém, além de quem sempre esteve próximo, é importante de verdade. E tu, até onde sei, foi desde o início a pessoa que esteve mais perto de ti. Não entendo porque tu te lamenta sofrendo pela falta de gente que tu inventa ao invés de te conformar com as pessoas que tu já tem, as únicas que tu precisa realmente ter. Querer coisas que não estão à disposição é só uma forma cômoda de desviar o foco do problema pra uma causa que não pode ser combatida. É muito mais fácil culpar algo inexistente e renegar o real motivo da maioria dos teus problemas: tu mesma. Acorda, Alice.

sábado, 8 de outubro de 2011

Insensatez.

      A consciência concreta da inevitabilidade do fim torna todo o caminho mais extraordinário. Algumas pessoas acham que sabem que tudo-é-passageiro. No fundo, elas carregam uma esperança recatada que as faz acreditar, sem querer, que o final está longe demais pra ser alcançado. A tendência de tudo que começa é, invariavelmente, acabar. É importante ter noção da gravidade que é apostar alto em algo que, por natureza, não é feito pra durar. Nossos instintos não nos preparam pra autotraição a que eles nos guiam. Não pensar nessas questões, subentendidas pra alguns, é uma forma conveniente de desacredita-las.

      Por isso, não te espanta quando acabar: é assim mesmo. Eu sou chato pra caralho, tento não deixar isso tão visível, só consigo esconder por um tempo. É irreversível, vamos nos tornar desinteressantes, repetitivos, óbvios. E nos olharemos sem esperar surpresas, entediados e resignados, adiando o inevitável, protelando dores. Eu vou sentir pena de nós dois e ficarei magoado por dois. Tu vai guardar, bem escondida, uma ponta de raiva por mim e eu vou ficar achando que não é raiva suficiente. Nossa paixão/amor/seja-lá-o-que-for vai virar chiclete mastigado que perdeu o sabor e isso jamais será engraçado como era pra ser.

      Por outro lado, claro que há sempre a possibilidade de firmarmos um acordo tácito com cláusulas contratuais implícitas, válidas pra ambos, que nos proíbam de ficar conjecturando essas merdas sem ser julgados. Se tu concordar, nós fingimos cinicamente que somos ingênuos e que, sei lá, vai-ser-diferente-dessa-vez-porque-somos-únicos-e-tal. Nós inventamos verdades convincentes o bastante pra adiar por tempo indeterminado a hora em que elas se tornarão mentiras. Eu me esforço pra não repetir erros que não canso de cometer e tu me mostra como eu tô errado em relação a eles. Vamos ser convencionais, bregas, piegas, dramáticos, cristãos. Maturar juntos, ter uma penca de filhos, repartir problemas, envelhecer de mãos dadas, se querer sem desejo, ser como nossos avós e não acabar nunca, pra sempre.

sábado, 1 de outubro de 2011

Vitória.

      Antônio olha para os pezinhos da filha iluminados pelo luar que entra tímido por uma fresta na janela. Vitória dorme docemente em seu bercinho rosa sonhando com cores, formas disformes e o peito de sua mãe. Seu pai, prestando atenção na pulsação de seu peito, é tomado por um medo imenso que mal lhe permite ordenar os pensamentos. O bebê respira tranquilo, mas Antônio não consegue deixar de pensar até que ponto isso é bom.

     Quando sua esposa anunciou que estava grávida, Antônio não se conteve de felicidade e saiu berrando pelo apartamento. Agora, dez meses depois, ele admira o resultado daquela transa mais ou menos enquanto tenta afastar ideias incômodas que lhe tomam de súbito. Pensa em Vitória como um amontoado de células inexpressivas, um filhote sem propósito, um animalzinho sem utilidade. Um bichinho de estimação que sobreviverá de seu trabalho, que custará muito caro e será incapaz de reconhecer e valorizar seu esforço.

     Sua filha terá o que comer, frequentará excelentes escolas, fará aulas de piano, estudará em uma boa universidade e terá um emprego garantido em sua empresa. Mas Antônio acha que Vitória não merece nada disso. Ele pensa em outros bebês, frágeis e vulneráveis como o seu, morrendo de fome, crianças que já nascem condenadas a não ter um futuro. Pessoas que nascem como erros que ninguém quer assumir, mais propensas a se tornarem bandidos, estupradores, assassinos e filhos da puta desse gênero. Gente que é culpada por existir.

     Antônio vê sua filha, mais velha, como uma menina mimada, prepotente e egoísta. Sente pavor de não conseguir fazê-la entender a gravidade que é estar vivo. Acha que não conseguirá ensiná-la a compreender como as coisas são, o que faz elas serem escrotas do jeito que são. Tem medo de ser um pai ausente, de não ter tempo de dar lições importantes à filha; de ser renegado quando ela for adolescente; de vê-la se tornar uma pessoa fútil e interesseira; de ter o desprazer de pagar uma festa de casamento milionária para ela se tornar esposa de um idiota qualquer que pedirá sua casa de praia emprestada e a trairá com putas de luxo.

    Vitória acorda de repente, como se fosse desperta pelos pensamentos sombrios do pai. Não chora, não esperneia, não caga e nem mija, só fica quietinha enquanto varre o ambiente com seus grandes olhos. Antônio olha o corpinho da filha, os bracinhos se mexendo lentos, e sente que poderia desmembra-la usando apenas uma mão. Vitória o olha tão fixamente que se Antônio não fosse tão cético, poderia jurar que a menina o estava recriminando. Ele diz: “Sabe, Vitória, seria engraçado se eu te jogasse no lixo e uma família brega te adotasse e também te chamasse de Vitória”. Ela emite um pequeno gemido, faz um esboço de riso, um leve levantar de lábios, talvez tenha sido só um soluço. Antônio ri maravilhado com a possibilidade de a filha estar condenada a ser uma boa pessoa.

sábado, 24 de setembro de 2011

Besta.

 

      Ela ama de um jeito cínico. Dá como se não se importasse em receber e dispensa como se eu não fizesse falta. Talvez não faça mesmo e eu queria me convencer do contrário por conta de um otimismo infantil. Quem sabe só sirvo pra suprir carência, pra passar o tempo, pra afagar o ego e ouvir quando ela resolve falar. Sou uma peça substituível que cumpro minhas funções, quando solicitada, e mantém a vida dela nos eixos. Não me importo, gosto de não ser necessário, nem minha vaidade se incomoda. É bom não ser responsável pela felicidade de ninguém. Eu não quero ser importante por ser essencial, eu quero ter valor por ser alguém dispensável, mas que não se deve dispensar.

      Às vezes ela me confessa seus medos e eu até vejo alguma fragilidade, um pedido de amparo. Eu sei que é ilusão. Ela sabe, assim como eu, que ninguém pode protegê-la do imprevisível. Mas eu gosto de abraça-la contra o peito e dizer vai-dá-tudo-certo assim mesmo. Ela entende que eu não sei se vai dá tudo certo, mas me aperta como se desse jeito demonstrasse que deposita fé nas minhas palavras. E eu me agarro a ela com a força de quem acha que pode mudar o mundo. Meu orgulho fica pequeno e a minha censura deixa passar um pensamento ridículo desses impossíveis, dramáticos, que vem em momentos oportunos que deveriam durar pra sempre (tipo assim).

     No entanto, ela sai dos meus braços, me olha com um sorriso sarcástico e me chama de besta. Eu sorrio de volta querendo manda-la tomar no cu. Ela me beija com desleixo e diz tchau. Eu, besta, fico admirando ela ir embora, sem saber quando vou revê-la. Ela não precisa muito de mim e, sabe, sinceramente eu também não careço tanto dela... Não sou triste longe dela, eu só não sou feliz direito, mas quem é? Não se pode correr atrás disso porque o que torna essas coisas especiais é o fato delas fazerem falta: são raras, por isso têm valor. A tendência é as coisas se equilibrarem, eu não posso me sentir como quando a vejo sorrir o tempo todo. Não fosse ela seria outra, a questão é que ela é inevitável.

sábado, 17 de setembro de 2011

Pedantismos Baratos.

      Minha arte é uma miscelânea de tudo e qualquer coisa resultando num nada pungente. Não faço arte para ser entendido: faço para que sintam, para que degustem, para que transcendam. Quem sorve da minha arte vive pequenas revoluções tão profundas que mal são intuídas. Compreensão e sentido são luxos supérfluos e meus apreciadores tem conhecimento de que são rejeitáveis. O essencial é ter sensibilidade para experimentar a veemência da obra e tornar-se parte dela, desconstrui-la e significa-la. Apenas aqueles cujas almas são quentes e lancinantes têm a competência de desfrutar do que proporciono.

     Técnica mais manjada que fingir doença para não ir à aula, o “artista” começa apelando ao uso de um paradoxo ridículo para conferir falsa profundidade ao que diz (tudo resultando em nada). A escolha de palavras vagas, sem um significado específico, também auxilia na árdua tarefa de acrescentar valor a algo pobre de natureza. A prepotência é tanta, que o autor afirma ser capaz de provocar “revoluções” internas e, para justificar a falta de provas que amparem isso, diz que elas são “profundas” demais para serem percebidas. Elas não existem, claro.

      A introdução termina de uma maneira deprimente quando ele, praticamente, manda a lógica à merda e fala desprezar o bom senso dos “apreciadores” que procuram entender suas “obras”. Para o “artista”, “arte” é proporcionar sensações inúteis, incapazes de conter qualquer conteúdo que contribua de maneira prática para agregar algo a quem a “aprecia”. “Sentir” sobrepõe o “entender”, processar o que se experimentou não é necessário. Até porque, se o espectador se desse ao trabalho, perceberia que o processo é inútil devido à miséria do material a ser processado.

      Por fim, “a diva” invalida críticas negativas alegando falta de sensibilidade por parte daqueles sensatos o suficiente para não se deixarem levar por um dramalhão injustificável, sem pé nem cabeça, protagonizado por personagens medíocres e desinteressantes.

      Crio para me libertar de mim mesmo, para quebrar os grilhões da minha consciência. Não necessito justificar o que faço, pois o que faço se autojustifica. Minhas obras servem como um trampolim para que os corajosos se atirem no cerne da existência. No grande nada a que nos resumimos nós e todas as coisas. Pois do nada viemos e para o nada vamos. Entre um nada e outro só há o vazio que ignoramos no meio. Faço convites para que me acompanhem ao imo da solidão, ao âmago onde ficam enclausurados os labirintos que desconhecemos. Não os mostro a saída: eu os mostro o caminho. Eu os amarro com o fio de Ariadne e os convido a desfazer os nós.

      A arte como instrumento de libertação, de autoconhecimento, de busca, de oposição à ausência de sentido da vida... Um blá blá blá desnecessário para ganhar a empatia de outros “artistas” como ele. O magnânimo inicia uma reflexão existencialista frágil e superficial utilizando um niilismo clichê para parecer sábio e erudito, um discurso que não é nada além de muito afetado.

       Enfim, o senhor insiste em reafirmar que despreza a coerência e a objetividade em nome de uma “causa maior”. A tática é confundir o espectador a ponto de deixa-lo tonto demais para perceber a ruindade daquilo que admira. Uma obra certamente destinada a pessoas sentimentais em demasia que são incapazes de avaliar os seus sentires e os aceitam passivamente.

      Meu último trabalho é sobre agonia. Não uma agonia simples: uma agonia visceral. A luta tenebrosa do reencontro com si mesmo e a percepção de que, depois de algum tempo afastados, podemos já não mais nos reconhecer. Amanda é uma empresária bem sucedida que vê seu mundo cair após a falência de sua empresa, graças a um golpe dado pelo próprio marido. A partir daí, Amanda faz uma viagem de autodescoberta relembrando as escolhas que a levaram até aquele momento fatídico. Então ela decide resgatar um sonho antigo: ser escritora. Mas Amanda não consegue mais escrever como quando era jovem. A trama gira em torno da inaptidão de Amanda, sua frustração, seu mal estar, seu desespero. Copos atirados na parede, porres homéricos, a busca da inspiração em prazeres superficiais, a tentativa de encontrar-se no outro e a redenção. Um trabalho que me doeu realizar e que mesmo depois de feito continua me doendo. Espero que mais gente sinta ao menos metade do que senti ou continuo sentido.

      O filme é sobre uma mulher ingênua e tonta o suficiente para perceber que se casou com um mau caráter apenas quando ele lhe arruína a vida. Quando a mesma se viu desempregada, ao invés de procurar um novo emprego, como qualquer pessoa sã faria, ela resolveu virar uma escritora que não escreve. Imersa numa provável crise de meia-idade, a personagem decide reviver a adolescência protagonizando cenas de imaturidade e desequilíbrio emocional que, provavelmente, causarão vergonha alheia nos espectadores mais sóbrios.

     O autor praticamente assume que tem os mesmos conflitos da mulher ao afirmar que lhe doeu roteirizar e dirigir, provavelmente pela identificação com a tal Amanda. Mais um motivo para deduzir que se trata de um farsante, um homem que apela para coisas dramáticas e mesquinhas para camuflar a falta de profundidade de suas obras, se aproveitando da sensibilidade de espectadores passionais: emocionados, não conseguem perceber a superficialidade do filme, deduzem que sua parcial incompreensão é resultado de um sentido superior que lhes escapa. Na verdade, tal sentido é tão real quanto o “talento” do diretor.

      Em suma, o autor, como seu alter ego, é um artista incapaz de produzir algo realmente proveitoso que, no fundo, tendo consciência disso sente-se frustrado e “dolorido”. Seria menos triste se ele assumisse que fez um filme de comédia cujo único objetivo era entreter, fazer o espectador relaxar, espairecer, divertir-se e nada mais. Infelizmente, seria uma comédia terrível, mas, por ser honesta, seria perdoável.

sábado, 10 de setembro de 2011

Recalque.

      Escrevo consciente da inutilidade do que faço. Porque ode nenhuma que eu possa brandar chegaria perto de fazer jus ao teu encanto. Ainda que embalado por fantasmas de imortais trovadores ultrarromânticos, mesmo que escrevesse em desatinos febris após tempos te contemplando, que passasse eternidades dentro de eternidades te cobiçando com urgência e falta de pudor, por mais que o próprio Divino Espírito Santo usurpasse meu copo, conduzisse minhas mãos, aclarasse meus pensamentos e um rio bravo de palavras lindas, cálidas, penetrantes, inquestionáveis se derramasse por ti e encantasse qualquer um disposto a vê-lo correr, ainda assim, tudo seria vão.

      Eu poderia ir ao fim do mundo e ordenar a Zéfiro que soprasse jasmins, lavandas, gardênias, lírios, gerânios, e que as flores mais especiais expirassem e soprassem por ti ventos de mil fragrâncias hermeticamente combinadas em perfumes que, de tão maravilhosos, até Deus não hesitaria em fechar os olhos para senti-los melhor. E faria isso todos os dias, só para que sorrisses, tranquila, sentindo uma brisa leve, logo cedinho depois de tu pôr os pés para fora de casa, assim cada um dos teus dias começaria com a promessa de algo bom. Pois um ser tão belo como tu não merece experimentar a feiura dos sentimentos execráveis que contaminam a podridão humana. És semideusa, estátua de mármore, ninfa, mistério da natureza.

      Em noite profunda, sei que fadas, anjos, elementais, espíritos de luz, se esgueiram para dentro do teu quarto e ficam mudos admirando tua beleza repousar. Pois não há, nem entre as coisas viventes, nem entre as inexistentes, tão pouco entre as que ocupam o limbo entre a verdade e a mentira, criatura tão maravilhosa quanto tu. E é por isso que eles vêm te ver, vêm te adorar, vêm sorrir para ti, porque tu és tão admirável que estás acima do limiar que ocupamos: esta terra sem graça que separa o que desconhecemos do que achamos conhecer. Tua beleza vai além da capacidade humana de percebê-la tamanha sua plenitude. Tu carregas o brilho de mil estrelas, uma força inexplicável e intraduzível, um sopro divino impossível de ser teorizado porque tu és a obra prima do Criador e Ele sabe disso.

      Assim, tomado por lirismos constrangedores, admirando tua face milimetricamente modelada e remoendo fantasias tolas, abro mão da racionalidade e escolho voluntariamente me entregar ao teu engodo. Porque sei que tu és uma quimera superficial, tonta, egoísta, metida, presunçosa, mentirosa, lesa, sem conteúdo, egocêntrica, manipuladora, orgulhosa, aproveitadora, mesquinha, intragável, efusiva, invejosa, desequilibrada, inconsequente, mal educada, espírito de porco, melindrosa, hipócrita, preconceituosa, arrogante e pau no cu. Tenho quase certeza de que só nasceste porque Deus quis se masturbar homenageando a perfeição que Ele é capaz de criar. Deus é vaidoso e foi por isso que na ânsia de enfeitar o jarro, se esqueceu de preenchê-lo.

 

Gente, obrigado por lerem essas bobagens. O texto do próximo sábado vai ser melhorzinho… Ou não. Inté. :)

sábado, 3 de setembro de 2011

Fabiana.

      Vitor decidiu que iria se apaixonar por Fabiana. Ele achou que sua vida ficaria mais divertida se estivesse apaixonado por alguém. Não que sua vida fosse monótona: era uma vida normal, com uma rotina cansativa e distrações bobas que o mantinham são. Mas fazia algum tempo que Vitor se sentia apático, então imaginou que ter alguém em quem pensar antes de dormir e por quem ansiar deixaria as coisas mais interessantes. Escolheu Fabiana por três razões: ela era bonita, legal e tinha bom gosto. Necessariamente nessa ordem. Ele sabia que, além da própria Fabiana, milhares de outras mulheres se encaixavam nesse perfil. A questão é que ela já estava ali, enfiada no seu dia-a-dia, trabalhavam no mesmo lugar, seria mais prático e fácil. Além do mais, Regina já tinha namorado, Duda o achava insuportável, Mônica era antissocial demais e Jaque havia lhe dado um fora especialmente inesquecível. A paixão precisava ser consumada. Talvez o fator ‘falta de opção’ tenha influenciado um pouco na sua escolha. Porém, para Vitor, não importava se era A, B, C, D ou E, já que os sintomas da paixão são mais ou menos universais e, independente da fonte, os efeitos seriam parecidos.

      Depois de quatro meses, Vitor decidiu abortar seu projeto, mas aí já era tarde demais. Ele havia passado aquelas semanas reparando nas sutilezas de Fabiana: a forma como ela mexia nos cabelos, o formato de seus lábios ao sorrir, o jeito como mudava a entonação ao falar no telefone, o carinho com que admirava suas unhas recém-pintadas, a mania que ela tinha de respirar fundo fechando os olhos e levando a mão à testa quando ficava estressada... Vitor passou a enxergar beleza nos detalhes mais banais de sua pretendente. Antes de dormir, ficava olhando as fotos de Fabiana no Facebook. Tentava programar o inconsciente pra lhe pôr com ela numa casinha com lareira perdida no sopé de uma montanha, ou coisa parecida. Vitor estava convencido de que se apaixonar era apenas uma questão de condicionamento e concentração. Algo como prestar atenção no que é bom e tentar ignorar o resto. Ele só foi ter consciência da gravidade do que tinha feito quando tentou desfazer.

      Naqueles quatro meses, Vitor se aproximou de Fabiana, se tornaram bons amigos. Ele não queria ficar com ela antes de sua paixão maturar a ponto de ficar inconfessável, achava que assim seria mais bacana. Vitor era meio frouxo e muito burro. Fabiana era realmente uma moça muito legal e simpática. E mais linda do que ele havia reparado meses antes. A beleza dela cresceu proporcionalmente ao tempo que passaram juntos. Como nada havia acontecido entre os dois e só havia uma boa relação de amizade, Vitor não teve muitas oportunidades de se decepcionar. As circunstâncias e o tempo em que caberiam as frustrações só existia na cabeça dele. Ele preenchia esse tempo com fantasias doces encenadas em lugares bucólicos, como a superfície lunar, por exemplo. A situação era tão ridícula que se tornava um pouquinho deprimente: ele lá, tendo fantasias típicas de garotas recém-saídas da menarca, enquanto ela, sem suspeitar de nada, era incapaz de olhar o amigo com outros olhos. Aliás, Fabiana era tão incapaz de olhar o amigo com outros olhos que não quis mais ter o amigo quando ele se declarou tal qual um menino de quarta série.

      Foi um desastre. Vitor convidou Fabiana pra uma falsa festinha em sua casa e contou todo seu plano. Disse a ela que depois do primeiro mês as coisas saíram de controle e, mesmo se quisesse voltar atrás, já não poderia. Falou que queria ter dito antes, mas estava esperando o “momento certo”. Detalhe é que o “momento certo” nunca existiu, mas Vitor tinha fé nele. Sua esperança ingênua foi o suficiente pra fazê-lo aguardar por uma situação que, além dele mesmo ter forçado, poderia ter criado muito antes. Não que o resultado fosse diferente, mas seria menos idiota. Fabiana o desprezou com classe e delicadeza, explicou que não conseguia vê-lo de outra forma e que era melhor se afastarem por um tempo. Vitor ficou arrasado. Ele ficou repetindo pra si que igual a ela havia várias, que tudo aquilo era produto de sua carência, que Fabiana nem era tão bonita assim, que não havia nada de realmente especial nela e que seus dentes eram meio tortos e aquilo era horrível. Eram mantras que ele repassava enquanto se debulhava em lágrimas. Ir ao trabalho passou a ser uma tortura. Entrar na internet era martírio. Ver Fabiana lhe arrancava suspiros de agonia. Vitor, então, descobriu que com paixão não se brinca e que ele era fraco e muito dramático. Ao menos substituiu a apatia por sofrimento. Pouparia tempo se tivesse ido num desses respeitáveis clubes sadomasoquistas: lugares onde não devem cobrar muito pra desfrutar do prazer de sentir uma mulher enfiando o salto agulha no seu peito.

sábado, 27 de agosto de 2011

Domingo de manhã.

      No domingo de manhã minhas pálpebras pesavam mil quilos. E eu rolei na cama procurando fiapos de sono, fazendo força pra me desligar. Fiquei imaginando lugares em que nunca estive, pessoas que eu não conheci, histórias que eu não protagonizei... Mas eu já havia gastado toda vontade de dormir e sobrava aquele mal estar de quem quer ficar inconsciente e não pode. Bater com a cabeça na parede até desmaiar não era uma opção. Me enfiei debaixo dos cobertores e desejei sumir. O domingo prometia ser igual ao sábado e, apesar de não gostar da ideia, não tinha motivação nenhuma pra fazer qualquer coisa diferente.

      Às vezes, por mais que eu saiba que não é assim, a vida parece inviável. Eu via aquele dia se estender como uma sucessão de horas que eu precisava preencher e não sabia como. Não que eu não tivesse coisas a fazer, pelo contrário: o que eu não tinha era a menor vontade de fazê-las. Porque tive a impressão de que tudo que envolvesse sair debaixo dos lençóis resultaria só em esforços sem compensação. Tentei me livrar do desinteresse que sentia por tudo e qualquer coisa, no entanto, pra cada pensamento positivo que me ocorria outro negativo o anulava. Era como uma areia movediça que me afundava mais à medida que tentava sair da lama. A sujeira era só minha e me doía assumir a responsabilidade dela.

      A pouca luz que entrava resumia os objetos do quarto a vultos e eu me distraia inventando detalhes pra eles. Pintava o violão de outra cor, dava novos títulos aos livros, batizava com outros nomes os DVDs, colocava outras pessoas nos porta-retratos. Não era melancolia o que eu sentia, era pior: sentia ausência. Quando sentimos falta, sabemos que precisamos de algo pra nos suprir. Mas se temos dentro uma ausência, só nos resta preencher o vazio com a consciência que temos dele. Mas aí um lampejo de esperança me veio numa memória que eu parecia ignorar até então. Lembrei da existência deles e meu coração se encheu de graça. Porque, de repente, eu percebi que podia me salvar de mim mesmo. Deixei de frescura, fui à despensa, peguei o embrulho. Passei a manhã comendo chocolate e vendo Bob Esponja. Depois de eu me achar idiota, a vida me pareceu boa pra caralho.

sábado, 20 de agosto de 2011

Relógio de pulso hipnotizador.

      Quando Vinícius me contou que estava amando Cristina eu gargalhei da cara dele. Ele ficou me olhando puto e acho que, se eu não tivesse parado a tempo, teria levado um murro na cara. Foi uma reação muito natural e incontrolável, sabia que ele estava falando sério, mas não pude evitar. Não ri pra avacalhar nem em desrespeito ao que ele dizia sentir: eu ri porque achei aquilo absurdo demais. Tão incoerente que eu não consegui acreditar. Os defensores do amor romântico podem argumentar dizendo que o amor é incompreensível, que nasce mesmo nas situações mais improváveis e que eu não deveria ser tão cético. Mas eu digo que amores são coisas pessoais demais e pra cada um deles há razões que os sustentam. Eu conheço o Vinícius melhor que ele mesmo e conheci Cristina o suficiente pra saber que não tinha nada ali. Conversei com ela duas ou três vezes, não sei ao certo, só sei que depois da primeira as outras foram por obrigação pessoal.

      Apesar de bem bonita e de ser muito agradável olhá-la, Cristina era totalmente idiota. A idiotice dela era tão grande que nem pra ser engraçada servia. Ela era mais tapada que uma caixinha de café embalada a vácuo. E chata. Nós não conseguimos conversar sobre nada porque o único assunto que a interessava e que, aparentemente, ela dominava era ela mesma! Falava de suas viagens, falava de seus projetos, de suas amigas e falava com o entusiasmo de quem acredita que todos os ouvintes estavam realmente interessados em ouvir o que ela tinha a dizer. O pior é quando ela resolvia contar piadas que provocavam tristeza de tão ruins e nos obrigavam a nos olhar totalmente desconcertados e sem saber o que fazer. Até Vinícius se sentia constrangido. Se nós vimos Cristina de novo, foi só porque ele achou errado os amigos não terem contato com a namorada. Errado era ter uma namorada daquelas.

      Eles se conheceram numa noite infeliz em que decidimos ir a uma boate pra ver como é. Na verdade, quem decidiu foi o Diego, nós fomos porque não conseguimos fazê-lo mudar de ideia. Ficamos vinte minutos lá dentro e mais uns trinta segundos Vinícius estaria salvo. Íamos saindo quando Cristina se aproximou e falou qualquer coisa no ouvido dele que o fez querer ficar lá. No outro dia Vinícius apareceu dizendo que tinha achado a mulher de sua vida. Falou brincando, mas eu imediatamente soube que ia dar merda. Começaram a namorar uma semana depois daquele dia e aguentaram mais três meses. O problema é que Vinícius não era mais o Vinícius. Ele se tornou um cara inseguro, vivia em função dos ciúmes idiotas de Cristina, fazia todas as suas vontades, quase parou de falar conosco, começou a nos evitar e passou a gastar todo o tempo livre com ela e seus amigos.

      Um dia resolvemos dar uma prensa em Vinícius, fomos eu, Diego e Marcelo até sua casa sem avisá-lo. Ele estava péssimo e realmente precisava desabafar. Contou que não conseguia parar de pensar em Cristina: que sentia necessidade dela em todos os momentos do seu dia; que não aguentava ficar longe; que sentia o seu cheiro por todos os cantos; que aguardava com uma ansiedade incontrolável o dia nascer pra revê-la; que tinha insônias terríveis por causa disso; que tinha vontade de morrer em seus braços; que começou a escrever poesias; que queria ter cinco filhos com ela e mais um monte de coisas horríveis desse nível que não lembro agora, mas que reforçaram a ânsia de vômito que senti. Foi aí que ele disse que a amava e que eu ri. Marcelo me olhou feio e eu imediatamente fechei a boca. Ficamos uns dez segundos calados, sem saber o que dizer, e o Vinícius com cara de criança chorona esperando algo. Então Diego lavou nossas almas quando traduziu em uma pergunta simples tudo que queríamos saber:

_ Por quê?

_ Por quê o quê? Perguntou Vinícius.

_ Por que tu ama ela?

_ É! Por que tu ama ela? Perguntamos eu e Marcelo quase ao mesmo tempo.

_ Eu já disse! Eu não consigo ficar longe dela, eu penso nela o tempo todo, fico ansioso quando...

_ Não! Interrompeu Diego. O que a gente quer saber é por que tu não consegue ficar longe dela, por que tu não para de pensar nela, por que tu fica ansioso etc.

_ A gente quer saber o porquê de tu amar ela. Explicou Marcelo.

_ Eu sei lá! Eu simplesmente amo, ora! Falou Vinícius.

_ Negativo! Ninguém “simplesmente ama”. Disse Diego.

_ Sim! O que tu admira nela, por exemplo? Perguntei pra ajuda-lo, mas também porque estava realmente curioso pra saber se aquela mulher tinha alguma qualidade.

_ Bom... Eu admiro... o... o... sorriso dela... o... a determinação dela... e... e... e... sabe, ela é uma mulher muito forte. Vinícius respondeu hesitante, gaguejando, fazendo um esforço sincero pra lembrar o que gostava nela. E não foi nem um pouco sincero.

      Ficamos olhando pra ele penalizados. Nós três sabíamos o que dizer. No fundo, Vinícius também sabia, só preferia ignorar aquilo na esperança de ser um cara mais “nobre”. Como se renegar sua natureza fosse sinal de moralidade e não de desonestidade. Se ele não fosse tão covarde e encarasse aquele negócio com a importância que merecia, não teria ficado tão mal. Não estou dizendo que era algo irrelevante: se fosse, não teria deixado Vinícius daquele jeito. Além do mais, por trás de muitas coisas há essa vontade franca e inegável que muitos preferem simplesmente ignorar. O que eu quero dizer é que ele estava interpretando tudo errado e confundindo as coisas, acho que foi isso que o levou a virar um idiota. Acredito que quando nós reconhecemos os motivos que nos levam ao sofrimento, ele se torna compreensível e pode ser superado. Psicólogos ganham dinheiro assim, parece. Enfim, depois de um tempo o silêncio ficou insustentável. Como nem um dos dois parecia nada confortável pra dizer o que precisava ser dito e eu já estava ficando impaciente, respirei fundo e disse:

_ Vinícius, tu só quer comer ela loucamente. Sei que não foi uma boa maneira de colocar as cartas na mesa, mas pra mim aquilo era óbvio demais e fiquei chateado porque meu amigo nunca teve surtos de estupidez antes. Acho que era a convivência.

_ O quê!? Porra! Claro que não! Ele negou, como eu esperava.

_ Sério, Vinícius, a gente perguntou o que tu admira nela e tu mal conseguiu falar três coisas! Falei indignado.

_ Tu nem mencionou coisas como caráter, inteligência, senso de humor, bom gosto, compreensão, honestidade, companheirismo, sensibilidade... Completou Marcelo, mais paciente que eu.

_ Ela é carinhosa... Choramingou Vinícius.

_ Pelo amor de deus, até um cachorro é carinhoso contigo se tu der comida pra ele! Me arrependo agora de ter dito isso dessa forma.

_ Vinícius, fala de novo pra gente o quê tu mais gosta na Cristina, mas dessa vez vale atributos físicos. Diego insistiu pra que ele assumisse e eu achando aquilo tudo besta, besta, besta.

_ Tá bom... Eu acho ela linda e o sexo com ela é maravilhoso. Satisfeitos? Ele contou isso bem mais aliviado e eu entendi que tudo ia fica bem.

_ As três qualidades de Cristina: cara, peito e bunda. Falei sorrindo pra quebrar aquele clima de velório desnecessário e fiquei satisfeito quando todos riram.

_ Porra, cara, como é que tu vai te apaixonar por uma mulher daquelas? Perguntou Marcelo sorrindo.

_ Ah, só transando com ela pra saber! Respondeu Vinícius com um sorriso largo.

_ Ela fica calada depois pelo menos? Perguntei de novo mais interessado em saber como ele a aguentava por tantas horas consecutivas do que pra realmente confortá-lo.

_ Ela fica sim! Eu nem presto muita atenção no que ela fala, pra falar a verdade, a beleza dela me hipnotiza. Ele já estava muito melhor e isso deixou todos à vontade.

_ Nem se ela soubesse balançar um relógio de pulso hipnotizador com o mamilo!

      O Marcelo filosofou rindo e deixou todos nós chocados com aquilo. Olhamos pra ele o reeprendendo pelo mal gosto e pela falta de bom senso. E eu já ia começar um discurso sobre isso quando não nos aguentamos mais e começamos a gargalhar satisfeitos acrescentando detalhes à cena, felizes por aquele negócio tosco ter se resolvido sem a necessidade de castração.

sábado, 13 de agosto de 2011

As Três Fases da Tua Vida.

      Há três fases na vida... Mentira, eu sei que essa é uma maneira estúpida de começar, eu espero que lá pelo meio melhore um pouquinho. A verdade é que eu não quero que isso fique muito pessoal, o que me obriga a ser idiota e generalizar desse jeito. Vou usar a segunda pessoa porque vai me deixar mais confortável e, talvez, até ajude a criar alguma empatia. Como ia dizendo, é claro que viver é uma experiência subjetiva demais pra eu dividir em etapas e explicar cada uma delas de maneira isolada, como se não se cruzassem tipo, sei lá, partes da resolução de um problema de física. Também é imbecilidade acreditar que as experiências pelas quais passaram cada um que está lendo isso agora os levaram às mesmas conclusões. Assim como é inútil tirar conclusões absolutas a respeito da vida já que elas só servem pra nós mesmo e, enquanto vivemos, precisamos estar acessíveis a mudanças. O que penso agora pode não me servir muito depois. Ou seja, eu posso estar escrevendo um texto gigante que, provavelmente, vou achar muitíssimo idiota daqui a pouco.

      A visão que temos de nós mesmos, que necessariamente afeta a maneira como enxergamos o mundo e lidamos com as coisas, muda conforme o tempo. Em maior ou menor grau de intensidade, não seremos mais os menos daqui a alguns anos. Claro que a partir de um determinado momento tais mudanças tendem a diminuir, a ficarem sutis demais pra que as percebamos: felizmente, ganhamos certa estabilidade. É inviável viver em crise. O que não significa que eu esteja plenamente de acordo com o que vou dizer quando chegar à etapa três e concluir este texto. Tenho só vinte anos e qualquer coisa que eu diga sobre a existência ou a respeito do porquê disso ou daquilo vai sempre parecer precipitado, pra não dizer prepotente e babaca. Enfim, agora que já reconheci minhas limitações e justifiquei metade das baboseiras que vou escrever, posso explicar a vida sem muita culpa.

      Há três fases na vida. Na primeira tu quase não tens consciência da gravidade que é estar vivo. A menos que tenhas experimentado a morte de alguém próximo na infância, a vida não passa de uma sucessão de dias mais ou menos iguais. Tu não percebes o quão entediante eles são porque ocupas teu tempo livre com brincadeiras que, apesar de simples e bobas, te satisfazem. As relações sociais são ingênuas e as pessoas, sem que te dê conta, se parecem bem mais do que realmente são. Dizer só a verdade, na maior parte das vezes, parece o único caminho viável e tu não sabes direito como podes usá-la pra ferir as pessoas. Neste primeiro momento, as fantasias e invenções não terminam em decepções porque as expectativas que crias não dependem muito dos outros pra serem satisfeitas. Quando são frustradas, é muito fácil trocar por outras novas. O mundo é um lugar muito pequeno e a felicidade está ali, mas é ignorada. E talvez só esteja ali por isso.

      A segunda fase é a da desilusão. O conhecimento que colocam na tua cabeça com o passar dos anos desperta em ti uma curiosidade insaciável. Tu buscas, de forma masoquista, cada vez mais tentar compreender o que acontece e isso acaba mudando tua visão de mundo. Tu notas que há coisas muito erradas por aí e, de repente, tudo parece fora do lugar. Percebes que as pessoas, apesar de diferentes, têm em comum o dom de se contradizerem e um egocentrismo irritante. Começas a sentir um tédio inexplicável e um desinteresse patológico toma conta do teu espírito cansado de fazer quase nada. A existência adquire uma carga absurda e tu sentes o mundo pesar sobre os ombros: mal podes seguir em frente por causa das pernas hesitantes e da ligeira dor de cabeça que tens quase o tempo todo. O que te salva são fiapos de esperança que tu usas pra romantizar boas expectativas em situações cujas chances de acabarem bem são ridículas. E tu sofres voluntariamente com o que inventaste como se isso não fosse óbvio. Tu te sentes vítima de um lugar desregulado e te enoja ter dentro de ti a natureza humana responsável por tantas coisas revoltantes. A vida parece um martírio e tudo que há a se fazer é tentar se distrair pra esquecer isso.

      Enfim, a terceira e última fase eu chamo carinhosamente de “foda-se”. Tu finalmente começas a perceber o quanto é estúpido te deixar abater por problemas minúsculos comparados aos que têm bilhões de outras pessoas menos egoístas que tu. Tomas consciência do atraso de vida que era dramatizar tudo que te acontecia e ganhas certa serenidade e paciência pra lidar com as coisas. Aprendes a ser menos radical e intolerante com quem teve a sorte de não chegar ao teu grau de prepotência. Abres o peito pra encarar o que vier: te entregas consciente, sofres sem culpa, levanta, segue em frente um bocadinho melhor do que era. Ao invés de desprezar, passas a valorizar as pessoas que gostam de ti: a prestar atenção nos seus detalhes, ouvir o que têm a dizer, a lidar sem arrogância com seus defeitos. Tu escolhes acreditar nas coisas boas de novo e, tal qual na primeira fase, não perdes tempo sufocando com as ruins. Aceitas, enfim, que é inviável se estressar com o que está muito além da tua desprezível vontade: só o que resta é fazer tua parte e torcer pra que o resto se encaminhe. Tu juntas uns bons amigos, aproveitas como pode o que a vida tem a oferecer, investes no que sabes fazer e no que te dá orgulho e vai seguindo. Então tu percebes que viver nem é tão complicado assim. Passas a encarar a existência como algo absurdo demais pra ser levado tão a sério e adquires um fantástico cinismo que, além de sadio, é muito, muito divertido. Aí teu senso de humor não te deixa mais te enfiar nela, e tudo que fazes é rir da cara da merda.

sábado, 6 de agosto de 2011

Esse sábado eu resolvi fazer um post diferente…

 

 

       Juro que essa historinha aconteceu de verdade. Aliás, aconteceram algumas muitas coisas essa semana, mas eu não quero falar disso agora.

       Grato aos que ouvem. Até semana que vem. :)

sábado, 30 de julho de 2011

Luiz e Jorge.

      É ilógico e não tem coerência nenhuma se viciar numa mulher não existe, mas seria mais difícil se fosse um homem, e isso lhe consolava. Luiz, mesmo antes de conhecer Clara, já havia se apaixonado pelo seu nome. Clara era apenas um nome quando Mari, amiga de ambos, começou a falar dela. Encheu a cabeça oca de Luiz com fantasias lindas: lhe falou como eles pareciam ter sido feitos um pra o outro, disse que tinham até as mesmas personalidades e manias, os mesmos gostos estranhos, as mesmas teorias... Mari endeusou Clara. Luiz, como quem não quer nada (querendo muita coisa), descobriu o perfil dela no Facebook através da sua amiga. Ele ficou embasbacado: além de linda, Clara parecia realmente ter muitas coisas em comum com ele. Pra uma pessoa como Luiz, se algo que pode vir a ser “bom” parece “ótimo”, é o suficiente pra colocar fé naquilo e ignorar coisas óbvias do tipo: estar sendo extremamente preconceituoso e se iludindo demais, sem nem ao menos ter motivos razoáveis pra isso. Estar carente, vulnerável, suscetível, beirando o desespero, só justifica metade da babaquice.

       Mari, que também já havia falado de Luiz pra Clara, combinou o encontro dos dois numa festinha em sua casa. Isso foi uns oito dias antes dele acessar o perfil dela, coisa que ficou fazendo durante toda aquela semana. Conversou muito com Mari sobre Clara. Ficou sabendo que ela estava meio pra baixo por ter acabado o namoro recentemente e que gostava de literatura clássica. Saber que ela estava emocionalmente abalada e ter um gancho pra uma conversa que ela não poderia ter com qualquer um: Luiz achou que era tudo que precisava saber. Só o que Luiz não sabia era o quão idiota estava sendo. Passou aqueles dias sem conseguir dormir direito, babando na tela do computador pelas fotos de Clara e pesquisando no Google sobre os livros que ela havia lido. Ele tentava encontrar detalhes subliminares da personalidade de Clara através do que ela havia deixado público. Mas, claro, as interpretações dele eram escrotas, superficiais e só serviam pra ver o que queria enxergar. Luiz criou tantas expectativas em cima de Clara que se ela correspondesse à metade delas, já seria uma coincidência muito bizarra.

      Depois que foram apresentados, misteriosamente, cada um foi pra um canto. Luiz, deslocado, admirando Clara como se estivesse vendo a materialização de deus. Ela com um copo de vodka na mão, visivelmente entediada, sentada no sofá enquanto as outras pessoas se esbarram dançando na sala. Mari chamou atenção de Luiz e o impressionou a fazer alguma coisa. Ele, suando frio e tirando forças de suas entranhas, foi até Clara e pediu um cigarro. Ela lhe deu e ficou olhando pra cara dele esperando alguma coisa. Mas Luiz pegou rápido o Marlboro e foi até à varanda com as pernas tremendo. Depois de meia hora, cansada de esperar e já muitíssimo desinteressada, Clara cedeu ao Jorge e acabou ficando com ele. Mari não acreditou quando viu os dois se pegando bem ao lado de Luiz. Ele lá, olhando as estrelas, com um cigarro apagado nas mãos e lágrimas nos olhos. Não demorou muito e Clara foi embora com Jorge sem nem ao menos se despedir. Mari chamou Luiz de canto e perguntou o que havia acontecido e ele, sem saber direito o que havia acontecido, respondeu: “Ela é demais pra mim”. Passou uma semana se lamentando por alguém que só existia na imaginação dele. Não queria falar com a Mari sobre Clara e decidiu esquecê-la. Mas ele não aguentou muitos dias e acessou mais uma vez seu perfil no Facebook: viu que ela estava namorando o Jorge. Uma coincidência bizarra que alguns podem achar inaceitável, mas não pode, de forma alguma, ser considerada impossível. A vida é cheia de acasos caóticos e ligeiramente sacanas. Bom, Luiz sentiu dor. Uma dor inventada, desnecessária, infantil, burra, injustificável, descabida, imbecil, boboca, covarde e imatura, mas que doía do mesmo jeito.

sábado, 23 de julho de 2011

Reencontros e desencontros.

   

     Paloma caminhava feito um zumbi empurrando o carrinho pelos corredores. Eram três da manhã. Ela havia acordado uma hora, não conseguiu mais dormir e começou a sentir uma claustrofobia inexplicável. Estava estressada demais, havia tido um dia difícil no escritório e o que acabara de começar prometia ser pior. Colocou um vestido velho e decidiu ir ao supermercado 24h da esquina pra comprar cigarros e duas pizzas de calabresa. Ia andando sonolenta, passando pelas sessões desertas, arrastando suas havaianas enquanto sentia crescendo uma tranquilidade reconfortante. A luz branca uniforme refletia nas embalagens e Paloma estava tão à vontade que começou a usar o carrinho como um patinete. Imaginou que o céu poderia ser um supermercado com prateleiras infinitas cheias de produtos grátis. O que eu acho improvável porque deus deve ser comunista e, mesmo de graça, comer loucamente pode ser considerado consumismo e apego a coisas materiais. Mas, enfim, Paloma viu o Lucas, ficou sem reação, e bateu nos congelados.

      Lucas havia sacaneado Paloma há uns quatro anos. Namoraram por seis meses e antes de completarem sete, Lucas disse “não dá mais” e sumiu da vida dela. Paloma cobrou explicações, justificativas, mas ele insistia em ficar em silêncio repetindo variações de “não tem como a gente continuar”, mesmo sem nenhum problema aparente. Daí a raiva imensa que ela sentiu virou uma mistura de nojo e mágoa e manter distância dele se tornou a coisa mais lógica a se fazer. Depois de semanas tentando entender o que aconteceu, Paloma achou mais prático acreditar que Lucas não gostava muito dela e pronto. Fazia sentido, já que ele não teve consideração nem pra dizer o porquê de estar indo embora e não se importou com o seu sofrimento. Se bem que filha-da-putagem, às vezes, não é uma questão de caráter ou desafeto e sim de fazer uma escolha errada sem querer.

      Paloma, depois da batida, se abaixou e começou a engatinhar numa tentativa ridícula de se esconder de Lucas. Ela ficou repetindo “puta merda” mentalmente à medida que arrastava os joelhos no chão. Ele já havia a visto, sabia que estava tentando evita-lo, mas caminhou até ela do mesmo jeito. Lucas não estava raciocinando direito e também ficou assustado ao vê-la, avançou por instinto. Evidente que a situação era constrangedora pra ambos, se ele tivesse pensado por mais alguns segundos iria perceber o quanto era errado tentar falar com ela. Depois de quatro anos, as duas pessoas já tiveram tempo suficiente pra se desacostumarem uma da outra. Se não mantiveram contato durante todo esse tempo, não havia motivos pra se falarem numa circunstância daquelas. Paloma tinha certeza que Lucas teria bom senso suficiente pra desviar o caminho e fingir que não a viu, mas isso foi até ela esbarrar em suas pernas.

_ Oi.

_ Tava procurando meu brinco, caiu em algum lugar...

_ Eu sei que tu tava tentando te esconder.

_ Tá. Vou indo.

_ Espera aí.

_ Espera o quê, Lucas? A gente não tem nada pra conversar.

_ É claro que a gente tem.

_ Não, a gente tinha, agora não importa mais. Olha, tenho que acordar cedo, eu vou indo.

_ Eu gostava tanto de ti que fiquei com medo.

_ Ah, Lucas, faça-me um favor, né.

_ Não, de verdade, eu tava tão apaixonado, que fiquei assustado, tava me sentindo muito dependente, era intenso demais pra eu suportar e...

_ Lucas?

_ Que foi?

_ Vá tomar no cu, tá?

      Paloma deixou o Lucas com cara de idiota e foi embora. Seu coração estava acelerado e ela carregava um sorriso estranho que misturava nervosismo e satisfação. Preferiu ignorar o passado, por mágoa, orgulho e um leve desinteresse. Não há como saber o que aconteceria se ela tivesse feito uma escolha diferente. As decisões que tomamos têm resultados imprevisíveis, e é mais confortável acreditar que fizemos aquelas que nos poupou de mais transtornos. Como é impossível prever o que aconteceria se fossemos pelo caminho A e não pelo B, não faz sentido ficar remoendo consequências que nunca existirão. Então, Paloma foi dormir relembrando o prazer enorme que teve ao mandar Lucas tomar no cu. Mas se sentindo uma grandessíssima filha-da-puta por isso.

sábado, 16 de julho de 2011

O Neto.

 

      Er... Oi... Olha, eu não sei o que dizer... Sério, eu tô um pouco nervoso haha... Desculpa, pessoal... Tá... Nossa, eu tô realmente nervoso... Calma... Er... Hum... Eu sei, eu sei hehe... Bom... Certo... Hunf... Ok... É lógico que eu sei que não preciso ficar nervoso. Pombas não precisam cagar em cima de carros e nem por isso meu carro amanhece um dia sem tá cagado por elas! Olha, eu tô ficando estressado, então eu vou ser bem sincero com vocês, eu não gosto desse tipo de rodinhas de apresentação, acho um constrangimento totalmente desnecessário, não sou bom em falar em público, nunca fui, pelo amor de deus, a gente vai se ver uma vez por semana, sentar a bunda na cadeira e tentar colocar o inglês na nossa cabeça! Quem em sã consciência vai gastar o único tempo que tem pra aprender a droga do inglês fazendo novos amigos!? Eu tô muito satisfeito com meus amigos, pra quê fazer amigos novos!? Pra comer na fes-ti-nha-de-con-fra-ter-ni-za-ção!? Eu não vou ter tempo pra aprender a confiar em vocês, eu não vou me expor pra vocês, eu não quero a comida de vocês, me desculpem, vocês não precisam saber quem eu sou, pra se fazer colegas basta saber o nome do indivíduo e pronto, por que todos nós não falamos só os nossos nomes e pronto!? Mas nãããão! Se eu disser pra vocês “eu sou o Neto” todos vão ficar me olhando, esperando eu dizer mais, eu complementar com o que eu faço, o que eu gosto, o que eu penso... “quem é você?” porra, isso lá é pergunta que se faça!? Como vocês querem que eu responda isso!? Têm livros chatos pra caramba a respeito de como é impossível fazer essa merda, tem teses de filosofia sobre isso, escreveram páginas e páginas divagando sobre essa porra, alguns dizem até que nós nunca vamos saber quem somos, como eu posso dizer pra vocês uma coisa que nem eu sei!? O pior é que parece eu sou o único que não vê sentido nisso! Todo mundo que falou até agora pareceu ansioso pra discursar, abriu a boca pra falar de si cheio de orgulho, como se fossem pessoas interessantíssimas que todos adorariam conhecer, né!? “Ah, eu sou pisciana, muito sonhadora, sabe como é” sabe como é o quê, mulher!? A pessoa diz quem é pelo signo! Pelo signo, minha gente! Não me olha assim, não, vocês pediram pra eu falar, eu vou falar, aí o outro diz “ah, eu sou o Geraldo, sou engenheiro, casado, tenho três filhos” e eu com isso, Geraldo!? O quê é que eu tenho a ver com a tua família, Geraldo!? Aí vem a dona Fátima e diz “é como diz o filósofo: ‘definir é limitar-se’” quem diz isso é o Orkut, dona Fátima, pelo amor de deus, não tem como a senhora ser menos brega, dona Fátima!? Desculpa, dona Fátima, eu não queria ofender a senhora, mas a senhora é brega pra caralho, dona Fátima! A senhora faz isso por sadismo, não é professora, a senhora quer ver o circo pegar fogo, quer pegar os alunos nervosos, os alunos que gostam de ficar quietos, assistir a aula e ir embora, quer me ver me borrando de medo, é assim que a senhora se diverte e depois fica olhando a gente gaguejar com um sorrisinho simpático, olha, professora não gosto do seu sorrisinho simpático, não, pra mim ele é tão falso quanto o “quem sou eu” da Rosana porque eu sei muito bem que Rosana não é médica coisíssima nenhuma, Rosana é prostituta profissional e atua sob o codinome de Sandrinha Sapeca, cobra setecentos paus pelo programa, fala pra eles como tu me extorquiu ontem à noite, Sapequinha, vamos nos conhecer agora, vamos colocar as cartas na mesa, ninguém esconde nada, quem mentir paga prenda. Vocês começam, eu vou bem ali no banheiro e já volto.

 

Qualquer dia eu me junto com meus amigos pra gravar isso e colocar no Youtube.

sábado, 9 de julho de 2011

Babaca, mas nem tanto.

 

      Ela estava sentada ao balcão tomando a segunda garrafa de cerveja. Eu a vi dando fora em três caras com jeito de só-tô-aqui-pra-beber-e-foda-se-você. Acho muito difícil crer que alguém que vai à boate, num sábado à noite e desacompanhada está atrás só de bebida e não quer ser incomodada por ninguém. Ainda que não fosse consciente, pra mim era mais do que provável que aquela menina estava atrás de pau. As probabilidades só não eram maiores porque considerei a possibilidade de ela ser lésbica. Mesmo no escuro, percebi que era muito bonita. Bom, isso é um pouco de exagero porque a pouca luz só me deixava ver o contorno do seu corpo. Mas achei que seria sacanagem da natureza presentear alguém com formas como aquela e contrabalancear isso com um rosto mal acabado, então não me preocupei muito. Além do mais, já havia duas horas que eu estava procurando uma mulher disponível, o Lucas e o Fábio já tinham se arranjado e eu mais um pouco desistia de conseguir diversão. Enfim, o rosto ocupava uma das últimas posições na minha escala de prioridades.

      Depois de muito observar e constatar que ela estava realmente sozinha, fui lá me vender. Ela já tinha dispensado outros caras sem muita conversa e, confesso, eu fui meio desacreditado. Resolvi fazer uma abordagem agressiva porque qualquer coisa clichê que eu falasse não iria funcionar. Afinal, ela era do tipo que vai-beber-sozinha-em-boate-e-não-tá-nem-aí. É preciso certo grau de autoconfiança e desprezo pelos outros pra fazer algo assim, sem se importar com os julgamentos. Com certeza ela já estava cansada de receber cantadas babacas e ouvir papinhos cínicos, então era necessário fazer algo mais trabalhoso. Eu decidi fugir dos lugares comuns pra tentar surpreendê-la e fazê-la perceber que eu sou “diferente”. Risos. Como se qualquer homem solteiro e heterossexual que se dispõe a ir numa boate não tivesse a fim da mesma coisa... Somos todos iguais, o que nos difere é a forma que usamos pra conseguir o que queremos. O que eu queria fazer era arriscado: ela poderia ser burra demais pra me compreender ou inteligente o suficiente pra não cair na minha lábia.

      Meu plano era chegar, me fingir de menino sem jeito e dizer coisas como: “Olha, eu já vi tu dispensando três caras, não te preocupa que tu não vai precisar fazer o mesmo comigo... Vim aqui porque não é todo dia que a gente vê uma mulher foda o suficiente pra sair de casa e beber sozinha, mas se tu tá aqui deve ter um motivo... Enfim, essa festa tá um tédio, meus amigos foram embora e, se tu não te importar, ficar aqui conversando seria mais legal do que dançar Lady Gaga”. Não é muito bom, porém: é o que tinha pra ontem. Eu me coloquei uma expressão de desinteressado e fui à luta. Sentado ao seu lado no balcão, dei uma olhada de canto de olho, cruzei os braços, respirei fundo, me virei... mas, eis que quando me preparava pra articular as palavras, arregalei os olhos, fechei a boca e quase não me contive quando vi a minha salvadora. Estampada na blusa da menina em preto-branco, reluzindo na luz negra e com um sorriso tosco à la Mona Lisa: Santa Clarice Lispector. Quase não pude segurar meu riso de satisfação. Com a maior calma do mundo, olhando contemplativo para uma garrafa do outro lado do balcão, disse alto suficiente pra ela me ouvir:

_ É estranho sentir saudades de algo o qual mal vivi ou evitava viver. (Havia visto no Twitter)

_ Oi? (Ela virou e vi que tinha o rosto quase tão bonito quanto o corpo)

_ Nada... Vi a Clarice na tua blusa e me lembrei dessa frase. É muito bonita. (Mentira, eu acho de uma forçação de barra triste)

_ Nossa, tu é fã dela? (Imediatamente me imaginei com meus amigos, tomando vinho e fazendo emocionadas leituras dos livros de Clarice)

_ Claro! Ela é uma das melhores escritoras que existem. Já li “A Hora da Estrela” e “A Paixão Segundo G.H”, e tu? (Eu li a capa)

_ Já li “As Pequenas Descobertas do Mundo” e “A Hora da Estrela”. (Pensei: “Ótimo, não leu nem metade do que a mulher escreveu, posso falar qualquer merda”)

_ Ela é demais, né? Consegue escrever de um jeito tão poético... me vejo muito nos textos dela. (De novo, quase não seguro o riso depois de dizer isso)

_ Eu também! Ela fala de solidão de um jeito único, muito profundo, parece que tá falando exatamente o que tu sente. (O horóscopo também)

_ Eu sei! Não é incrível o nível de compreensão que ela tinha? A habilidade dela de usar a linguagem pra explicar o inexplicável? De chegar ao inalcançável e ver o invisível? (Eu não consegui não rir nessa hora, mas dei a entender que eram risinhos de nossa-tô-muito-empolgado-olha-como-tô-feliz)

      Mônica fazia aquele tipo de menina que só gosta de bandas semi-inexistentes que ninguém nunca ouviu falar por aqui. Era parte do clã que acha inaceitável alguém assistir Triplo X ao invés de um Laranja Mecânica da vida. Gente estranha que se veste igual e se acha mais inteligente que os outros porque assiste séries ao invés de novela e sonha em morar na Europa, mesmo nunca tendo ido à Europa. Além de Clarice, ela também idolatrava “divas do cinema” como Audrey Hepburn, Greta Garbo e Brigitte Bardot. Mônica disse que suas atividades favoritas eram: “Ler, escrever, fotografar, ouvir música, admirar a chuva, comer só o recheio dos biscoitos e ficar molhando os pés até enrugar antes de tomar banho”. Um minuto de silêncio... Quando saquei a dela, foi muito fácil falar exatamente o que ela queria ouvir. A menina era tão previsível quanto as piadas do Zorra Total. Falei meia dúzia de bosta sobre uns filmes do Kubrick; inventei umas curiosidades sobre os Beatles; disse que meu segredo ridículo era o sonho que eu tinha de viver um grande amor em Paris, falei dos cafés de Montmartre, da grama do Champ de Mars e dos cinemas da Champs-Élysées: foi mais do que o suficiente pra Mônica ficar encantada por mim. Nesse meio tempo ela já havia bebido mais duas garrafinhas e não foi difícil leva-la ao motel. Que ninguém me chame de aproveitador barato: no sexo casual há pelo menos duas pessoas diretamente envolvidas sentido prazer, eu nunca fui egoísta em relação a isso e até paguei a conta que, aliás, não foi nada barata. Felizmente ela era espetacular e valeu o investimento. Deu seu celular e me fez prometer que ligaria. Óbvio que não vou ligar, né, comer ela duas vezes seria muita sacanagem.

sábado, 2 de julho de 2011

Sinal Fechado.

 

      Parado ao meu lado no semáforo, eu vi um homem borrifar a água usada para limpar para-brisas na cara de uma menina, ela tentava limpar o vidro do seu carro. Depois de fazer gestos negativos com a mão e diante da insistência dela, ele simplesmente jogou água em sua cara. A garota, mais surpresa que eu, ficou parada olhando através da película por uns cinco segundos. Fiquei observando espantando aquela expressão neutra, apática. Por um momento a vi irada, levantando seu pequeno esfregão e martelando com uma força sobrehumana o vidro até despedaça-lo. Mas, com vergonha de mim, admirei a criança enxugando o rosto com as mãos, baixando a cabeça e se dirigindo para o carro de trás.

      Eu me senti tão escroto que foi como se eu mesmo tivesse humilhado a menina. Senti vergonha de estar dentro de um carro com borrifador de água, à disposição dos serviços dela. Surgiu uma repulsa tão grande de mim que quis sumir para não ter mais a minha companhia. Tive vontade de largar o carro no meio da rua, ir até o veículo do homem e perguntar se ele não tinha nojo de ser ele mesmo. Quis enfiar o esfregão no cu do cara, quebrar seus membros, atirar uma pedra em cada vidro do seu carro, botar fogo em sua casa. Mas aí o sinal abriu, respirei fundo e seguimos, como se nada tivesse acontecido, em direção opostas.

      Depois ainda fiquei imaginando se a menina estudava, se tinha casa, se tinha o que comer, se tomava banho, se usava drogas, se tinha pais, uma boneca, roupas, alguma alegria. Fiquei me perguntando se o homem tinha filhos, se foi maltratado quando era criança, se acreditava em Deus, se era rico, se estava puto com alguma coisa, se pagava os impostos em dia, se conseguia dormir tranquilo à noite. No entanto, logo depois me consolava repetindo mentalmente que eu estava sendo dramático e que coisas assim acontecem todos os dias. Que a responsabilidade daquilo era dos idiotas que colocaram a menina no mundo, e eu não tenho nada a ver com isso. Que não faz sentido me martirizar por algo que não depende de mim pra acontecer ou acabar. E me tranquilizei tão facilmente quanto me emputeci.

      Um grande intelectual chamado Milton Santos disse que a humanidade nunca existiu e que só agora estamos fazendo ensaios do que será a humanidade. Eu concordo, ao menos em parte. A história humana é marcada por guerras, violência, brutalidade, disputas de poder, opressão. Se analisarmos dessa forma, é evidente que evoluímos ao longo dos séculos. A selvageria tornou-se inadmissível, a discriminação (ainda que teoricamente) é socialmente condenada, os índices de educação aumentam consideravelmente, as liberdades individuais passam a ser gradativamente mais respeitadas e um otimismo sadio é criado em torno da crescente popularização das novas tecnologias.

      O problema é que a natureza humana é a mesma desde o início e não há previsão para que isso mude. Somos egocêntricos, vaidosos, egoístas. Há tempos vivemos no “salve-se quem puder”. A urbanização foi, é e continuará sendo só um pretexto pra deixar as coisas mais confortáveis pra quem tem o poder de aproveitá-las à custa dos que não podem. E ainda reclamamos das consequências dessa violência velada, dessa indiferença que julgamos inculpável. As cidades abrigam paranoicos, estressados, explorados, marginais, iludidos, babacas e todos disputam diariamente os mesmos espaços. As pessoas, as amizades, se tornaram apenas entretenimento barato. Compaixão e solidariedade saíram de moda. Nós nos perdemos no meio dessa letargia sem nem perceber. Não foi só por não ter feito nada em relação ao episódio da menina que eu me senti um merda: eu me senti realmente mal porque sei que há outros milhões como ela, e eu também não vou fazer nada por nenhum deles. Assim como os outros, estou ocupado demais preocupado comigo mesmo, tentando me salvar.

 

domingo, 26 de junho de 2011

Um velho.

 

      Sou um velho. Não me defino como velho para evocar uma série de estereótipos e preconceitos que me limitem e me tornem previsível e, portanto, mais compreensível. Alguns dizem que devemos respeitar os mais velhos e eu, mesmo antes de ser velho, sempre achei babaquice respeitar qualquer um que não nos respeita. Portanto, não me afirmo velho para provocar qualquer empatia (ou mesmo antipatia) daqueles que nos generalizam como se fossemos simples feito crianças. Se me digo velho assim, logo de cara, não é para justificar minhas ideias, muito menos dar credibilidade à elas. Falo que sou um velho apenas porque é uma das poucas certezas que tenho a meu respeito.

      Passei boa parte dos meus oitenta anos tentando me encontrar. Não que eu não saiba exatamente quem eu sou. O problema é que nunca encontrei alguém que aturasse o convívio comigo por muito tempo, logo, nunca tive com quem me reafirmar. Por passar a maior parte do tempo interagindo apenas comigo, acabo um pouco confuso às vezes. Eu sei que pareço ridiculamente dramático, do alto das minhas oito décadas, falando de crises existências. Mas, acreditem, depois de tanto tempo sem saber meu lugar no mundo, eu simplesmente aceitei minha condição como sendo uma consequência inevitável da decisão que tomei: permanecer vivo. Ser deslocado não foi uma escolha, eu não tinha outra opção.

      Deixei minha esposa depois de dois anos de casado, e isso ocorreu há 52 anos. Ela levou nossa filha e nós nunca fomos muito próximos: o fato de eu considerar seu nascimento um erro deve explicar basicamente o porquê. Aliás, meu casamento foi um terrível equívoco. Me juntei porque estava terrivelmente apaixonado por uma mulher magnífica, linda, completamente alienadora. Era tão forte e novo meu sentimento que fui ao médico com medo de ter desenvolvido algum problema cardíaco. O problema foi que minha mulher mudou completamente depois do parto e se mostrou uma pessoa com a visão de mundo tão limitada quanto a de um peixinho dourado. Não a reconhecia mais e meu sentimento foi embora tão subitamente quanto acontecem as evacuações depois de um longo período de prisão de ventre.

      Gastei praticamente todas as minhas horas trabalhando feito um escravo pra uma empresa de merda. Não gostava nenhum um pouco de trabalhar ali, coisa repetitiva, gente idiota, mas o dinheiro era bom e eu fiz um ótimo pé de meia. Já aposentado, pude viajar pelo mundo como sempre quis. Lembro da minha infância quando lia nos livros de geografia sobre terras longínquas, sonhava em visitar países distantes acreditando que bastava mudar de espaço pra que eu mudasse completamente minha vida. Nos primeiros meses foi maravilhoso, mas depois de algumas viagens, perdi a paciência pra aturar jet lags, turistas empolgados, quartos de hotéis, passeios óbvios e estresses desnecessários. Foi então que percebi que a humanidade fez o mundo ficar tão uniforme e sem graça quanto ela mesma e que realizar sonhos é uma babaquice. Agora vivo aqui, isolado e doente, mas não reclamo. Se eu fosse minha filha, me internaria do mesmo jeito. Os remedinhos ajudam a passar o tempo e, esquecendo de mim, não preciso me preocupar com quem eu sou.

domingo, 19 de junho de 2011

Julieta.

 

      Julieta, ainda moça, resolveu tomar uma drástica decisão que serviu como um marco em sua vida. Passou a dividir as pessoas que já conhecia, assim como as que ela conheceu posteriormente, em dois grandes grupos: as interessantes e o resto. Apesar de consciente do seu radicalismo, ela nunca foi de se importar com muitos seres humanos. Logo, ser reducionista e fazer julgamentos simplórios, ainda que sabidamente idiota, tornava sua vida social mais dinâmica e divertida. Julieta avaliava as pessoas a partir de detalhes extremamente bestas: de frases impensadas numa conversa informal ao modelo de calçado que a pessoa em questão estava usando. Sua pesquisa antropológica, ao invés de levar em conta critérios respeitáveis ou pelo menos sensatos, era baseada num achismo tão bobo que beirava a infantilidade. Ela era uma atriz incrível e poucos sabiam o quanto era prepotente e arrogante. Julieta se fingia tão bem de qualquer outra coisa que não fosse ela mesma que era querida por quase todos. Difícil não gostar de alguém que se adequa perfeitamente à personalidade da pessoa com que está interagindo, como se isso fosse simples feito dar descarga.

      Se um desconhecido fizesse algo e Julieta desaprovasse, ele era posto imediatamente no grande grupo do “resto” e só poderia sair de lá se tivesse o desprazer de conviver ela. Julieta era falsa e ardilosa com quem não tinha amizade. Aproveitava-se da companhia dos outros para medir o quão divertidamente estúpidos eles conseguiam ser. Claro que estupidez era uma concepção distorcida na mente doentia de Julieta. Ela considerava estúpido, por exemplo, pessoas que sorriem demais, homens que usam chave do carro pendurada na cintura e mulheres que aceitam que os acompanhantes sempre paguem toda a conta. Seus amigos de fato cabiam em uma mão de quatro dedos e eram ouvintes dos piores de tipos de absurdos preconceituosos. Certa vez, em uma festa, Julieta disse à Nádia que havia adorado sua saia com estampa de onça, perguntando, inclusive onde ela havia comprado. Depois, rindo incontrolavelmente, comentou com Carlos como ela parecia uma “traveca pintada”.

      Sei destas coisas porque Julieta era minha melhor amiga. Respeitava seu mau-caratismo porque não conseguia levar aquilo a sério. Ela era tão intolerante e dissimulada que parecia uma super vilã de histórias em quadrinho. O lado sombrio era tão caricato que eu tentava não leva-lo em consideração. Para mim, Julieta só tinha um senso de humor excessivamente negro e nenhuma vergonha na cara. Fora isso, era uma pessoa compreensiva (acreditem), extremamente inteligente, que poderia conversar sobre quase qualquer assunto, além de ser naturalmente muito divertida e absurdamente engraçada. Passávamos um bom tempo juntos, erámos confidentes e cúmplices, falávamos sobre tudo e Julieta parecia realmente gostar mim. Ingenuamente, acreditei que conhecer as qualidades que ela simulava e ter sua companhia eram motivos suficientes para eu me considerar seu amigo. Depois fui descobrir que os “pequenos” desvios de caráter de Julieta eram, na verdade, mostras de uma mente psicopata e megalomaníaca.

      Na carta que Julieta deixou, ela confessou que todos, incluindo os amigos, a deixavam extremamente entediada. Contou que não via graça em ninguém e que fingir interesse estava lhe causando um esforço que não achava mais necessário. Segundo Julieta, ela estava “deveras cansada de procurar um único ser humano que provoque algo que não seja asco”. Falou que nós não conseguíamos despertar qualquer sentimento nela e a distração que proporcionávamos se tornou “repetitiva demais”. Julieta, sem pudor, expressava seu profundo desafeto por aqueles com os quais conviveu durante toda sua vida. Como ela pediu, todos nós, amigos próximos e família, lemos a carta e ficamos bestificados com tamanha desconsideração e frieza. Julieta se achava boa demais para nós. Para ela, todos erámos incorretos, sem sal, hipócritas e fracos. Sua insensibilidade era tamanha que a permitiu dissimular sentimentos ternos como se realmente fossem sinceros. Inconsequentemente, Julieta provocou depressão nos pais, no avô e nas duas irmãs. Ela foi embora porque considerava qualquer lugar uma ideia melhor que dividir este conosco.

domingo, 12 de junho de 2011

Bartolomeu.

bartolomeu 

      O leão de pelúcia de João foi um presente de natal. Sua avó disse que ele era mágico e que ganhava vida quando ninguém estava olhando. Ela lhe contou que o leão não falava nada porque era muito tímido. João, que nunca ligou muito para bonecos, gostou imediatamente do bicho: primeiro porque ele era azul, sua cor favorita, e depois porque o menino também era muito introvertido, logo, achou que iria se dar bem com o novo companheiro. Batizou seu presente de Bartolomeu. Seu pai lhe contou uma vez que Bartolomeu era o nome de um homem que morreu faz tempo e foi o primeiro a andar de navio pelo fim da África. João viu na TV que os leões moram na África e achou Bartolomeu um nome engraçado para se por alguém, então seu Bartolomeu seria o único vivo em todo o mundo. 

     Passavam o dia juntos em aventuras épicas que envolviam bruxas, bandidos, ETs, baratas gigantes, fantasmas e tudo que metia medo em João. Bartolomeu dava coragem ao menino e lhe protegia quando as coisas ficavam perigosas demais. João tinha medo de dormir no escuro antes de conhecer o leão, mas passou a dormir tranquilo, pois sabia que o amigo ficava vigiando o quarto durante toda a noite. Às vezes o garoto ficava acordado até tarde, fingindo que dormia, para ver se Bartolomeu brincava sozinho ou ia ao banheiro. João preferia a companhia do amigo de pelúcia a de outras crianças da sua idade. Quando sua mãe lhe chamou atenção para isso, ele disse a ela que gostava mais do Bartolomeu porque ele não fazia confusão e era um bom guardador de segredos.

      O leão perdeu o olho esquerdo enquanto explorava as densas matas que ficam no fundo do jardim de inverno. Bartolomeu, guiado descuidadamente por João, seguiu o rastro até um formigueiro secreto quando foi atacado por uma flor espinhosa assassina. O menino correu choramingando e pediu à mãe para que transplantasse o olho do amigo de volta, mas ele sempre voltava a se desprender. Conformado com a tragédia, o garoto explicou a Bartolomeu que aquele era o seu destino e que era melhor aceita-lo e se acostumar com a ideia. João o consolou falando que havia gente com dois olhos sem que nenhum deles prestasse pra nada. Portanto, ele disse a Bartolomeu que não deveria ficar tão triste, já que ainda poderia ver as coisas com o olho que lhe restava.

      Um dia, João foi à praia com os pais e levou Bartolomeu junto para lhe mostrar onde fica a África. Durante a viagem, enquanto João segurava o bichinho pela janela, ele escorregou da mão do menino. Não era a primeira vez que fazia aquilo: na ida e na volta da escola, costumava segurar o leão do lado de fora do carro fingindo que ele era o Superman. João gritou e seu pai, assustado, freou forte quase provocando um acidente. Estacionaram no acostamento e acharam Bartolomeu espatifado no meio da pista, sem a cabeça e com as entranhas saindo do corpo. João chorou desesperado porque sentiu uma dor forte no peito. Passou algumas semanas dormindo com os pais, sem comer direito e mal falando nas aulas. As saudades faziam o menino sonhar com o leão correndo e, algumas vezes, até conversavam sobre a vida. João rezava para Deus cuidar do amigo e aproveitava para pedir um anjo da guarda. Ele havia voltado a sentir medo de dormir no escuro. 

       Já crescido, João mal se lembra da infância. Ele superou a perda de Bartolomeu alguns meses depois quando ganhou um videogame novo. Revive os fatos através das histórias dos pais, mas é como se fosse ouvisse uma vida que nunca lhe pertenceu. João aprendeu a lidar com as crianças que faziam confusão e parou de brincar sozinho. Esqueceu-se como era tímido e inseguro e dos segredos que morreram junto com seu melhor amigo. Recorda apenas que tinha um leão encardido de juba azul que caiu do carro. O leão morreu cedo, antes que João pudesse lhe matar. Ficou para trás com a inocência e a fé do garoto e foi substituído por brinquedos mais caros e pessoas mais independentes. O espírito de Bartolomeu vive, agora sim em silêncio, guardado dentro de João. Em sua memória, só a felicidade do menino para quem ele tentou ensinar como não ter medo do mundo mesmo sem poder enxergar as coisas direito.