quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Preenchimento.

     

      Quando ouviu o “tac” da porta atrás dela, teve quase certeza que a vida havia mudado. Ela ficou estática na entrada da sala ouvindo a própria respiração, sentindo o mundo girar. Prestou atenção no silêncio esperando ele ser quebrado por alguém escondido em um dos quartos. Ela não ouviu qualquer som além dos ruídos que as coisas fazem quando estão sozinhas. Os olhos dela vagaram pelos móveis durante alguns segundos enquanto seus lábios se afastavam um do outro devagar. Abriu a boca a ponto de poder meter, sem esforço, uma bolinha de ping-pong goela abaixo. Ficou admirando o quão idiota estava seu reflexo na LCD. Não que ela estivesse espantada ou aterrorizada ou surpresa: só queria engolir aquele momento. Ela acreditava que quando comemos aproveitamos a parte boa das coisas.

      O silêncio da sala se estendia feito um véu fino até os outros cômodos do apartamento. Eram duas horas e o mormaço se espalhava envolvendo os sofás, as estantes, a Tv, o home theater, porta-retratos, relógios, vasos, fantasmas, lembranças, os quadros, a mesa, objetos-terrestres-não-identificados, cadeiras e ela. A janela estava semi-aberta e as cortinas brancas dançavam com o vento. O feixe de luz vindo da varanda andava pra lá e pra cá de acordo com a posição do tecido branco. Ela permanecia calada, imóvel, observando como sua casa é quando ninguém mora lá. Pensou na quantidade de lugares assim, espaços que existem sem alguém ou algo existindo neles. Questionou-se a respeito da necessidade de haver pessoas ocupando casas como aquela, ocupando lugares que estavam bem antes de serem ocupados.

      Descalçou-se, deitou-se no tapete de peito para cima e ficou procurando detalhes no teto ampliado pela distância. “O teto só parece sempre igual, mas tá cheio de pequenas nuances, sujeirinhas, rachaduras... Nada é totalmente igual. Merda.”Ela pensava em coisas aleatórias como o teto, o lixo, o barulho, pessoas mal educadas, poluição, falta de espaço, pobreza, até que subitamente lembrou que queria entrar na internet e pensou em checar os emails, baixar uma série, terminar o trabalho, talvez falar com alguém e ouvir uma música qualquer, mas falar com quem e ouvir o quê? Queria dizer que estava sozinha. Só isso: “Estou sozinha. Tchau”. Achou que precisava auto-afirmar sua solidão para deixá-la bem grande. Ficou deitada no chão, porque era mais fácil.

      Aí ela sentiu necessidade de música e levantou-se.  Ligou o som e a sala passou a ecoar o violão e a voz doce do Caetano Veloso. Coisa mais bonita é você, assim, justinho você, eu juro, eu não sei por que você, você é mais bonita que a flor, quem me dera a primavera da flor tivesse todo esse aroma de beleza que é o amor, perfumando a natureza numa forma de mulher... E ela cantou baixinho, sorrindo, dançando abraçada a si mesma: se amando como se fosse outra, como se fosse um príncipe, fingindo que se bastava. E era verdade, porque não havia quem a desmentisse. E não havia o que fazer porque ninguém a cobrou nada. Não havia o que querer, pois não havia ninguém para dar. E nada aconteceu fora ela, livre para ser ela. E viver realmente havia mudado: vivendo a ausência dos outros, ela teve a fantástica ilusão de que toda sua vida dependia apenas dela.