segunda-feira, 30 de junho de 2008

Quando você passa eu choro.




Odeio. Odeio com resignação, raiva, anseio, luta, força e coragem a alucinação de ver sua imagem indescritivelmente bela materializada fora dos meus tormentos; e a brisa suave quase imperceptível que me atinge como um vendaval formado pelo balanço do seu corpo delgado; e o raio descrito pelo seu olhar remoto, produto dos olhos castanhos claros que um dia eu toquei; e a melodia desafinada, canto da sua voz polida; e o barulho que me ensurdece ecoando do interior impiedoso do seu peito; e eu odeio cada pedaço de chão pisado por você; e a sua sombra fugaz refletida nos outros, projeção banal das curvas por onde andei; odeio o seu sorriso espontâneo e a sua alegria besta; e o ar que respiras; e a ausência de nós; e o tempo que morreu; e a vida que não ressuscitou; e a desgraça arrebatadora - você, que corroí e enfraquece; e a felicidade apanhada; odeio as palavras carregadas naquelas nossas velhas traduções infiéis tentado em vão revelar o que não sabíamos- e não sabemos... A gente escrevia nas folhas perfumadas daqueles papeizinhos fragilizados pela umidade das lágrimas chuviscadas - lembra como a gente chorava sem perceber?... ; e eu odeio o cheiro doce das acerolas; e as lembranças felizes sucumbidas pela crueldade do tempo que não salva nem o muito nem o pouco, você ou eu.
Eu te odeio infinitamente como parte maior que és de mim.


Com a outra parte - aquele resto pequeno e custoso - eu te amo, muito. Por você eu chorarei até não perceber de novo, meu amor.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Fuga.

Ele saiu porque carregava um peso esmagador sobre os ombros, carregava o peso da sua existência pacata, medíocre e confinada. Aquela família ligada àquelas pessoas contidas naquele lugar eram grades que o trancavam numa cela minúscula escura e suja. O mundo, isolado daquela parte, era uma pequena janela luminosa que projetava uma realidade paralela a dele.
Ninguém entendeu quando ele sumiu. Tinha o que precisava, e quase tudo o que queria. Aliás, ele tinha muito mais do que tinham os outros que também queriam. Quanto às coisas que não tinha, ou não tinha porque não precisava ou porque não precisava querer. Foi inconsequente, imaturo, desequilibrado, louco, egoísta, ingrato, baixo, detestável, injusto e dissimulado. A vida não era dele, e ele não tinha o direito de usá-la daquela forma. Era um investimento, e investimentos são planos milimetricamente esquematizados para resultarem em lucros futuramente.
Ele saiu porque carregava o peso esmagador da ignorância. Esqueceram de ensinar a ele como transformar-se em grade e viver contente e satisfeito entre a cela e o mundo. Também não o ensinaram como desembaralhar os seus quereres, dentro dele os desejos e o tempo que levaria para realizá-los eram pontos distantes e perdidos no meio das incertezas. A falha maior foi não o ensinarem que a vida é uma passagem lógica e padronizada, todos precisam fazer o mesmo, e quem não fizer é inconsequente, imaturo, desequilibrado, louco, egoísta, ingrato, baixo, detestável, injusto e dissimulado, tudo que precisa ser feito durante essa passagem é passar cego e tranqüilamente: o futuro é um monstro voraz invisível e essa é a única forma de vê-lo.
Saiu porque seu sonho era achar uma saída, agora ele corre atrás dela.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Não ser.


Enterrei em algum canto secreto e longínquo, pedaços de alguém.
Os vestígios se separam em atos prontos, as ações são junções de falsetes. O ensaio deixa de ser uma peça, e transforma-se em conseqüência da solitude. Retraimento, antes detalhe material, é equivaler a camadas cada vez mais espessas: suportar distrações fúteis e medíocres e cegar, e chorar diante do abalo que é enxergar.
Perder-se de si em si na passagem instantânea do tempo. Suprimindo juízos, sensos, sentidos, falas desconexas, desvios de inconsciência, sentimentos. O risco é abolido, e o que sobra é parte do futuro.
E quando o tempo for ameno e palpável, nas horas em que a solidão for um pormenor físico e intensamente apreciável: transfigurações imateriais e gêmeas de consciências únicas que se elevam destroem o paradoxo surreal que é sentir-se só, o esquecimento passar a ser vivido.
O ímpeto de ser, fortifica toda a incompletude.
Vasculho a terra infértil, e da essência mais fundamental e límpida ressuscito um desmemoriado clandestino.