quarta-feira, 16 de abril de 2008

Vê.

Seus olhos eram fundos, carregavam um brilho apagado e o tom esverdeado de sua íris conservava os resquícios de esperanças perdidas na ausência do seu olhar.
Eram duas pequenas esferas assustadoramente pesadas, e por tudo que elas passavam, uma carga gigantesca era incrustada.
Seus olhos foram tão desproporcionais que feriam. Uma aflição dilacerante e continua. É que eles já haviam visto tanto de tantas coisas que foram remexidos, esticados, deformados que acabaram por ficar fora de órbita.
Talvez por isso, ele via o mundo daquela forma, estranhamente intensa: É que ver dura milionésimos de segundos, e seus olhos viveram rápidos demais pra acompanhá-los. Aquilo ardia.
A dor instalou-se, e ele descobriu uma cicatriz que atravessava ambos os olhos de cima a baixo e de dentro pra fora. Não tinham mais lágrimas, elas sedimentaram-se por dentro até se tornarem incontáveis pedras minúsculas e espelhadas que refletiam e aumentavam tudo que via.
O que via era tão grande que não cabia no seu ângulo de visão. Seus olhos pulsavam.
Batidas fortes e espaçadas por intervalos em que o tempo tornava-se sólido. E a cada batida sentia a ânsia reprimida de seus olhos desprenderem-se do que já havia sido seu dono um dia.
Ficaram absortos num estranho mundo em que o que há para ver é invisível.
Ele via formas coloridas que não existiam para ser vistas.
Conformou-se enfim, no seu estado de ver. Seu ver não era espelho, e o que ele via não olhava de volta.
Ele via amargamente só.
Ver tornou-se um processo lento e penoso, pois o que viu tornaras-se agonia. E de longe, todo o resto que havia para ser visto, era menos do que ser.
O que viu era maravilhosamente lindo.
Decidiu então, que antes que tudo que há para ser visto se perca antes que consiga ver, reunir todas suas forças e cerrar as pálpebras. E esperou, numa espera mais que angustiante, o que viu perder-se entre os labirintos escuros de seus olhos cegos.
E, para o seu desespero, não precisava ver para sem ti.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Quatro nas horas.


Por quatro horas sumi em ausência. Ontem não estava sentindo.

Por quatro horas, ontem eu consegui não sentir.

Ontem, por quatro horas, respirou, mexeu, ouviu, sorriu, falou e variou.

Não era eu, eu nem era.

Em quatro horas de ontem, fui mais vazio e opaco do que se pode não ser.

Nas quatro horas de ontem não vi cor, luz ou sombra.

E as pessoas não eram brancas ou pretas, elas eram em outra variação de existir.

As quatro horas de ontem não foram. Porque meu ato de ser se perdeu na passagem delas.

Por quatro horas fui conjugado em todos os tempos do nada.

Eu fui muito mais que morto.

Agora eu sei, depois daquelas quatro horas, do que é feito o ser e o sentir.

Porque eles são feitos em quatro horas.

Em quatro horas o vapor d'água se condensa em nuvens e formam-se gotículas.

E as gotas de chuva despencam além do tempo, e cada uma trás um verbo.

A vida não acontece em nove meses, ela nasce depois de quatro horas.

E a tempestade dura vinte e quatro.

Um dia tem vinte e oito. Quatro horas acontecem entre todas as outras.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Quanto o tempo faz?

Nem lembro... É que faz muito, muito tempo. O tempo foi se fazendo e refazendo e acabei perdendo o que tinha esquecido. É que tive tanta ânsia de esquecer, que nem percebi o tempo que tinha feito, e o tempo fez-se tanto e fez tanto que de tanto se fazer, remoer e bulir acabou por fundir em mim.
Sabe, não posso medir o tempo que se faz em mim. É difícil fazer. O tempo e eu somos quase que uma coisa só – aliás, eu e o tempo somos coisas sós. Ele me leva do mesmo modo que eu o levo. Ganhamos familiaridade, fazemos companhia um pro outro. É que o tempo se preocupa tanto em passar, passar e repassar que dura solitário. Tenho pena do tempo, ele sim, nunca vai ter o que eu, numa ambição quase imoral, espero tanto ele trazer. Ninguém passa com o tempo, apesar do tempo passar por todos. Triste ironia.
Bom, mas o que eu queria dizer é: o tempo me enganou. Consegue acreditar nisso? Pois é, também não esperava!
Não, não. Estou mentindo, eu sempre esperei. Mas é que de tanto esperar, a gente acaba por fazer da espera o futuro, é o modo mais simples (e idiota) de não esperar a vontade do tempo se fazer e ele finalmente preparar de forma mágica, equilibrada e correta o mundo, as coincidências, o clima, o momento, a situação e as pessoas para o instante seguinte. O problema é que eu não tinha muita escolha e eu nunca me contentei com o pouco, talvez seja meu grande defeito. É autodestrutivo.
Olha, tenho que falar: o tempo não matou, ele só adormeceu.
Mas olha, as coisas não dormem pra sempre. Só dormem o suficiente pra recuperarem suas forças, descansarem da fadiga insana que é viver, acalmarem um pouco os ânimos e esquecer os problemas até antes do depois.
Queria te dizer que o depois chegou. É, é isso. Aquilo acordou. Voltou vivo, puro, renovado, grande, sereno, melhor e mais tanto do que era.
Tanto, que o tempo é pequeno perto dele.
Tanto que não me sufoca mais, porque o respirar acontece num intervalo muito pequeno, e os meus intervalos já estão preenchidos.
Tanto que tenho que multiplicar e depois dividir
Tanto que pode ser muito, muito mais.
Tanto que é teu. E eu só queria poder te dar.
Mas tem uma coisa estranha, não lembro quando aconteceu... Não lembro quando acordou. Eu não vi. Ou será que vi?
Não, eu lembro: foi semana passada... Ou foi ontem? Não! Faz dois meses! Ou seriam cinco minutos?... Ou cinco dias? Ou foi no segundo antes deste? Ou no momento antes de me esquecer? Ou foi há tanto tempo, que nem memória eu tinha pra lembrar? Mas se eu não podia de forma nenhuma lembrar como vivi? Ou eu vivi e não podia lembrar? Ou lembrar é só mais uma variante de viver e, portanto não pode ser compreendido? Ou é querer viver demais?
Ah, mas agora eu sei. Enganei-me.
Culpa do meu relógio.. se bem que no meu caso deve ser uma ampulheta: sem ponteiros pra marcar horas, grãos que fazem momentos antes dos segundos
Eu queria que também soubesses: não posso me lembrar porque não deve existir tempo suficiente pra eu esquecer.